Jesuítas de Santa Cruz, posteriormente Palácio Real e Imperial de Santa Cruz.
Para maior recreio e melhor pouso da Real Família escolheu-se, a
quatro léguas de São Cristóvão, uma fazenda semiabandonada, chãos que
outrora pertenceram aos padres jesuítas, grandes campos de gado, terras
aos mesmos confiscadas pelo governo de Pombal, quando expulsou do Reino e
seus domínios os homens da Companhia de Jesus. Férteis e magníficas
campinas de bom pasto, rios, brejais, montanhas e o mar tranquilo,
próximo, garantindo uma segura e fácil ligação por via d’água com esta
cidade.
O jesuíta, para explorar melhor o sítio exuberante, aí criara
benfeitorias vultosas: diques, canais, engenhos, casas. Plantara a cana
de açúcar, a mandioca e arvoredo de fruto. O gado que possuía, além de
numeroso, era escolhido. Cerca de quinze mil cabeças, só de vacum! E
negros, negros em quantidade (cerca de dois mil), que o bom filho de
Deus vivia acasalando na ânsia de o ver reproduzir, a fim de assegurar,
de tal sorte, o braço mais do que necessário ao labor de sua empresa e
um consequente capital, representando altíssimo negócio pelo tempo.
O confisco ordenado por Lisboa, porém, entregando a gerência da
valiosa empresa a emissários do Reino, lançou-a na maior das
decadências. Ignorantes ou arraposados administradores, de tal modo se
houveram na direção da mesma, que vinte anos não haviam decorrido e já
por sobre a gleba dadivosa nada mais existia que a lembrança de energias
passadas e da atividade dos bons tempos, de todo e para sempre
desaparecidas. E quanto mais iam correndo os anos, mais aumentava o
rápido declínio daquele estabelecimento portentoso. Em 1808, os campos
de Santa Cruz nada mais eram que uma triste ruína. As grandes plantações
tinham diminuído de maneira singular. O gado, em manadas ariscas e
selvagens, fugia, para as matas mais vizinhas. Os escravos, sem
nutrição, formavam bandos de esquálidas figuras, o casario em que
moravam, a bem dizer, era um destroço. Caminhos, quase fechados pelo
mato. Os canais entupidos. Os brejais alagados. A casa que servia de
residência aos padres mostrava à vista os seus ossos de pedra e de
tijolo. A capela outro escombro. Era a administração da colônia. O
Brasil sob a jurisdição dos homens de além- mar.
Haviam os padres da Companhia de Jesus mandado construir, para
residência, em uma parte elevada, dominando a paisagem, sombrio casarão,
coisa precária e chã, dédalo de corredores e de celas, os telhados sem
forro, solo de laje e terra… Carência de ar. Luz exígua. As paredes
mostrando, como chagas, a queda, pela idade, dos rebocos.
A natureza verdejante, em redor, pagava, no entanto, em graça e encantamento, o desconforto material em que o homem vivia.
Quando se procurou um novo sítio de verão para nele instalar a Real
Família, além do de São Cristóvão, bocas lembraram logo – Santa Cruz.
Para que S. A. o Príncipe-Regente tivesse do lugar uma impressão
melhor, turmas de escravos para lá seguiram. Limpavam-se estradas,
desentupiam-se canais, e obras grandes e sérias quase transformaram, por
completo, a residência conventual dos padres jesuítas. Pôs-se na casa
velha e abandonada, forro, soalho de madeira, novas esquadrias, novos
rebocos, sendo que várias paredes derrubadas mudaram celas em salões.
Abonitou-se o aspecto do monstro escaliçado e antigo. A própria ermida
sofreu reparos. Substituíram-se retábulos, engalanaram-se santos,
arearam-se melhor os metais das alfaias do serviço divino.
E um belo dia, o Sr. D. João apareceu, com os de sua família e
muitíssimos nobres. Um delírio. Foguetes. Cabriolar de sinos, na capela.
Os escravos, em linha intérmina, formados, sobraçando flores,
folhagens, frutos, cantando loas ao grande Amo e Senhor.
Logo agradou-se do lugar, o Príncipe. Achou-o lindo e, sobretudo,
muito a calhar com o seu feitio patriarcal. Que paz! Que natureza! Que
lindos horizontes! Sobretudo, que magníficas pastagens! E a linha azul e
altiva das montanhas em torno? Alegria maior, entretanto, foi a dos
Infantes, ante os relvados vastos e sinuosos das campinas sem fim! Não
fossem eles Bragança! Reclamaram, logo, cavalos. Já os havia preparados!
Vieram ágeis e esplêndidas montadas. Dentro em pouco tempo as correrias
começaram. Havia muito que o Regente não montava; no entanto,
aprazia-se vendo os filhos manter as tradições da Casa, na arte da brida
ou da gineta. Correu, de coche, isso sim, todo o seu domínio,
minuciosamente, o visitando. E nele se instalou.
– Não fossem as obrigações da Regência, a natural dificuldade de me
pôr em relação direta com os meus Ministros e os meus Conselheiros e em
Santa Cruz viveria sempre, descuidado e feliz, disse ele, muitas vezes. E
com sinceridade.
Nem o bom coro, em boa solfa, lhe faltava na hora da missa, na capela da habitação campesina.
Conta Adrien Balbi que, D. João, a vez primeira que assistiu à
cerimônia religiosa com que se festejava a sua entrada na fazenda,
deleitado, espantou-se, vendo uma orquestra que se formava só de negros
escravos. Gozou a novidade, fez vir à sua real presença instrumentistas e
cantores, a todos animando com fervor. E foi assim que obtiveram os
pobres negros o que havia muito pediam, sem obter, isto é, uma escola de
ler e de contar e, a mais, um curso de música vocal e instrumental, com
músicos nomeados pelo Príncipe.
Parece que a ideia de organizar esses conjuntos musicais vinha do
tempo dos jesuítas. Em livros de procedência lusitana chega-se a ler,
até, que existia, por eles instituído – um conservatório de música,
grotesca fantasia que pode muito bem acompanhar, no gênero, as
inventadas só para melhor enaltecer os feitos dos colonizadores no país.
O negro sempre amou, enormemente, a música. No Brasil colonial viveu
sorrindo, cantando, mas sem conservatórios… O que é natural é que os
padres jesuítas animassem o pendor que essa gente mostrava pela música,
fornecendo-lhe estímulo e instrumentos. Escolas especializadas, porém,
para eles, coitados, não havia. Se os brancos a não tiveram!
Ainda possuíam, esses negros escravos, um teatro onde representaram –
o informe é do próprio Balbi – uma ópera especialmente escrita pelos
irmãos Portugal.
Quando aqui esteve Mawe,
o Conde de Linhares, inteligente e afoito, pediu-lhe que visitasse o
domínio distante, que já servia a Sua Alteza Real, e que lhe desse, do
que visse e julgasse, relatório e conselhos. Era de seu intuito melhorar
a cultura da terra semiabandonada, restabelecendo a exploração do gado,
intensificando-a. Pensava ainda na criação de um posto onde, ao menos
para uso e gozo das reais pessoas, fabricar se pudesse o queijo e a
manteiga.
Mawe, embora um tanto constrangido, aquiesceu ao pedido do Conde e
foi a Santa Cruz, levado por um guia e mais uma ordenança do real
serviço.
Teve de tudo quanto viu a pior das impressões.
Achou a terra formosa. E rica, mas, sem governo, sem trato, os
serventuários do lugar, sem o menor conhecimento das coisas de que
cuidavam, sem a menor ideia de disciplina no serviço. Informa ele que,
ao chegar, pela primeira vez, à fazenda, às 6 horas da tarde, só pelas
10 da noite conseguiu receber um pouco de alimento. Nem uma taça de café
pôde obter até então. No dia imediato, o seu almoço, marcado para as 7
horas, foi-lhe servido somente ao meio-dia! E o hóspede era um enviado
do Príncipe-Regente, com carta e guia de um Ministro de Estado…
Mawe, antes de falar na gleba em abandono, no serviço do escravo
desaproveitado, no plano da coroa, descreve a casa de morada (que já
servia ao Príncipe), informando-nos que a mesma só possuía, então, 36
peças, todas muito pequenas, denunciando certo melhoramento para a
instalação dos reais hóspedes. E extasia-se, como um poeta, diante da
planície, em frente, chão verdoengo de 4 léguas de extensão, cruzado por
dois rios perfeitamente navegáveis, com as margens todas bordadas de
rochedos reluzentes e árvores frondosas. Dos brejais, que a sua vista
alcança, fala, também, pensando que podem, depois de secos e aterrados,
servir de campos ótimos para qualquer cultura.
Por essa época há, sobre o solo fértil, trabalhando, 500 negros, que
vivem miseravelmente vestidos e “quase mortos de fome…”, declara ainda
e, a seguir, vem um rosário de observações, marcando os vícios de uma
administração ignorante e, além de ignorante, desonesta. Ervas daninhas
crescem em meio às plantações de café, diz ele. Animais maltratados.
Minados de doença. Tudo ao desmazelo.
Fez sinceramente o que devia, Mawe, no relatório apresentado ao Conde
de Linhares. Ao próprio D. João, em São Cristóvão, falou, depois,
lembrando alvitres e remédios capazes de transformar o sítio, que vivia em abandono, num verdadeiro paraíso.
Foi quando o Regente, então esclarecido sobre o caso e desejoso de
pôr em prática os planos magistrais do inglês arguto, sem a menor
cerimônia, lhe foi dizendo:
– Pois irá o Sr. Mawe dar ao que viu jeito, e progresso, pois o nomeio, desde já, para o cargo de administrador da fazenda…
Mawe espantou-se com a estapafúrdia ideia. Administrador de fazenda,
ele, que ao Brasil não vinha para exercer empregos subalternos, mesmo na
Casa Real! Naturalmente, fez ver ao Príncipe a impossibilidade de
assumir o posto que lhe fora oferecido. Não era um homem cujas
atividades devessem ser aproveitadas em encargos tão ao alcance de
qualquer. O relatório, amavelmente, por ele apresentado, bastaria como
guia a quem lograsse, apenas, uma vulgar aptidão para coisas de campo e
amor ao Real Serviço.
D. João, no entanto, bateu o pé, teimou. O administrador da Fazenda
de Santa Cruz havia de ser ele, John Mawe! Que se apresentasse para
assumir o cargo.
Valeu-se o pobre Mawe de Sidney Schmidt, comandante da esquadra
inglesa, surta neste porto, pedindo- lhe que explicasse melhor a Sua
Alteza as circunstâncias que o impediam de aceitar tão precário lugar.
Sidney Schmidt nada, porém, obteve, numa entrevista que o Regente, para
tratar do assunto, lhe concedeu.
E Mawe teve que seguir para a Fazenda Real de Santa Cruz, como empregado de Sua Alteza Real!
Assumindo o seu posto, não pôde, no entanto, praticar os benefícios
que pensava, no intuito natural de pôr em ordem a exploração da terra.
Começa Mawe, logo ao iniciar os seus trabalhos, lutando contra a má
vontade de todos os funcionários do lugar. Intrigam-no, ao fim de certo
tempo. Nota, depois disso, que as intrigas produzem certo efeito junto
ao Regente, que não vê nem nada sabe do que se passa em Santa Cruz.
Certo dia nota que já não manda. Que há ordens vindas de fora, valendo
mais que as suas. Aparece-lhe até um mandão, com cara de fiscal, ao pé
de si, cheirando-lhe o serviço, quiçá, contrariando-o a cada instante.
Quer abandonar o posto. Seguram-no, de novo. Mawe insiste, porém, e
insiste de tal forma que sempre acaba obtendo o que deseja.
E Santa Cruz continua, depois disso, a ser o que era sempre, depois da administração dos jesuítas, uma linda paisagem. Apenas.
Palácio de Santa Cruz em 1823
Desenho de Maria Graham
Com o tempo foram-se realizando, na casa da fazenda, alguns
melhoramentos. Hoje, de duas ou três celas fazia-se um salão.
Construíram-se, depois, aumentando o corpo do edifício, novos
compartimentos; aqui, salas; acolá, quartos. Reformou-se a capela. Por
ocasião do casamento do Príncipe D. Pedro, as obras tomaram, então,
vulto maior. Durante meses e meses operários ativos quase transformaram a
morada de campo em uma casa melhor. Dos Paços de São Cristóvão e da
Cidade seguiram móveis, sanefas e tapetes. Embonecou-se a residência, para que a noiva, que vinha de uma corte portentosa, aí não se sentisse mal.
Não se sabe a impressão que teve D. Leopoldina, da casa transformada.
Era a mulher de D. Pedro uma criatura mais do que discreta. E,
sobretudo, conformada. O que se sabe é que só muitos anos depois, pela
Independência, foi que a fazenda melhorou, realmente, um poucochinho,
após obras mais sérias e após os surtos de uma administração mais
vigorosa e, sobretudo, mais honesta.
Fonte:
[LuizEdmundo1957] L. Edmundo, A Corte de Dom João no Rio de Janeiro (1808-1821), Segunda ed., Conquista, Ed., , 1957.
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