domingo, 5 de maio de 2013

Cavalgada até Santa Cruz, por Maria Graham


Palácio de Santa Cruz em 1823 - Desenho de Maria Graham
Palácio de Santa Cruz em 1823
Desenho de Maria Graham
  • Quarta-feira, 20 de agosto de 1823
Há muito que desejava ver um pouco mais dos arredores do Rio, do que o fizera até aqui, e resolvi cavalgar ao menos até Santa Cruz, cerca de quatorze léguas da cidade. Como a estrada é muito trafegada para se temerem acidentes extraordinários, e eu não sou tímida quanto aos embaraços habituais, resolvi contratar um empregado negro e ir sozinha. Esta resolução, porém, foi superada por Mr. e Mrs. May, cujo irmão, Mr. Dampier, gentilmente se ofereceu para escoltar-me. Confesso que tive muito prazer em ser aliviada da responsabilidade absoluta de minha pessoa, e não fiquei pouco satisfeita por ter a companhia de um jovem bem educado e inteligente, cujo gosto pelas belezas pitorescas da natureza concorda com o meu. Penso que se há um ponto em que os companheiros de viagem concordam decididamente, posto que divirjam em idade, temperamento ou disposição, poderá sempre haver paz e conversação agradável, mais especialmente se, como no nosso caso, viajam a cavalo. Evita-se muito facilmente uma divergência de opinião com uma referência a um cavalo, que pode sempre ir depressa ou devagar demais, com o emprego da língua, ou do chicote, sem ofensa ao companheiro bípede.
Fomos bem provados hoje. Tinha-me convencido de que, após haver adiado nossa excursão de semana para semana, por um motivo ou por outro, se não a começássemos hoje nunca mais partiríamos: e, por isso, apesar da tarde ser o mais possível pouco prometedora, deixamos a casa do Sr. May às 4 ½ de modo a chegar a Campinha [Campinho] (I), primeira parada, para dormir, já que, ai de nós!, os animais não são como os meus cavalos chilenos, que me transportariam vinte léguas num dia sem queixa. Montamos, pois, o Sr. Dampier num cavalo alto e baio, de ossos grandes, com uma cinta de pistolas afivelada em torno de si, um imenso chapéu de palha e uma jaqueta curta, eu num cavalinho cinza, meu capote de marinheiro sobre a sela, e, a não ser isso, vestida como habitualmente, com um chapéu de palha de passeio e um costume cinza escuro. Nosso pajem, Antônio, o mais alegre dos negros, ia numa mula, com o porta-casacos de Mr. Dampier atrás e minha mala diante. Começamos pela parte alta da cidade e percorremos a bem trafegada estrada para São Cristóvão; depois de cruzar o pequeno morro à esquerda do Palácio (II), entramos numa região completamente nova para mim. Da parte ocidental da entrada do Rio de Janeiro uma serra montanhosa se estende junto ao mar até a baía de Angra dos Reis, formada pela ilha Grande e pela de Marambaia. Na parte setentrional dessa serra há uma planície, aqui e ali interrompida de morros baixos, que se estende quase até a região mais interior do Rio de Janeiro, e alcança, numa curva, a baía de Angra dos Reis. Esta planície deve ter sido, em época não muito remota, coberta de água, ligando essas duas baías, e insulando as montanhas acima referidas. Através desta planície desenrola-se nossa estrada entre um cenário grandioso de um lado e uma vista suave e linda de outro; mas à noite ficou tudo escuro e nevoado. Os topos das montanhas estavam cobertos de nuvens que despencavam impetuosamente pelos flancos e através de suas pedras, e mesmo, uma vez ou outra, vinha delas um ruído surdo do vento ainda que as rajadas ainda não nos alcançassem. Sob esta espécie de nuvem passamos o pitoresco Pedregulha [Pedregulho ] (III), e o pequeno porto de Benefica [Benfica] (IV), formado por um riacho. Em breve alcançamos a Praia Pequena (V), onde uma boa cópia de produtos são embarcados para a cidade. As nuvens haviam-se adensado ali tristemente e as névoas das grandes montanhas haviam mudado de aspecto. Ainda assim fomos adiante, abandonando completamente a baía. Passamos primeiro por Venda Grande (VI), onde se deve comprar tudo que é preciso para o cavalo ou para o viajante; depois Capon [Capão] do Bispo, bela aldeia, onde as nuvens de chuva fizeram com que desejasse parar; depois a ponte de pedra do Rio [de] Ferreira, onde a chuva, afinal, começou a cair em grandes e frias bátegas. Depois tremendos golpes de vento começaram a soprar das gargantas das montanhas e muito antes de alcançarmos Casca d’ouro [Cascadura] a proteção de capas e guarda-chuvas tinha cessado de ter valor. Poderíamos ter parado ali; mas como nos haviam dito que a venda de Campinho era o melhor lugar para repouso, resolvemos continuar, e, com algumas penas infligidas a meu cavalo para avançar, alcançamos a venda. Mas, se é delicioso, depois de uma longa viagem a cavalo sob a chuva numa noite escura e tempestuosa, chegar a um lugar de repouso, é, pelo menos, tão desesperador ser recusado na porta em que se esperava encontrar abrigo, com as roupas gotejantes e as pernas a tremer de frio; e tal foi a nossa sina. Não havia nada que comer, nem lugar para nós, nada para os cavalos, e assim saímos de novo a enfrentar a tempestade impiedosa. Poucas jardas além, contudo, surgiu-nos uma casa de campo baixa à beira da estrada e aí batemos. Um criado mulato veio cautelosamente dos fundos da casa para reconhecer-nos. Tendo-se certificado de que éramos realmente viajantes ingleses, molhados e surpreendidos pela noite, abriu-nos a porta da frente e nos encontramos diante de uma senhora de meia idade, muito simpática e de sua filhinha.
Chamava-se Maria Rosa d’Acunha [da Cunha]. O marido e o filho estavam ausentes, a negócio, e ela e a menina estavam sozinhas. Logo que mudamos nossas roupas molhadas e providenciamos quanto aos cavalos, que nossa hospedeira pusera numa construção vazia, deu-nos ela café quente, pão e queijo e estendeu seus cuidados hospitaleiros ao nosso negro. Deu a Mr. Dampier a cama do filho e preparou uma cama para mim no quarto em que ela e a criança dormiam. Esta gente pertencia à classe mais pobre dos fazendeiros, já que não possuíam acima de quatro ou cinco escravos, trabalhando duramente eles próprios. Parecem, porém, felizes, e, asseguro, são muito hospitaleiros.
Fazenda dos Afonsos - Desenho de Maria Graham
Fazenda dos Afonsos
Desenho de Maria Graham
  • Quinta-feira, 21 de agosto de 1823
Esta manhã parecia ao menos tão ameaçadora como ontem, mas resolvemos ir até o engenho dos Afonsos (VII) para cujo dono, Sr. João Marcos Vieira, tínhamos cartas de apresentação de um amigo na cidade. Em consequência, despedimo-nos de nossa amável anfitriã, que havia feito café cedo para nós, e metemo-nos por uma légua de estrada bem bonita em direção aos Afonsos. No lugar onde esta fazenda limita com Campinho há um grande pouso com telhas, onde encontramos um grupo de viajantes, vindos evidentemente de Minas, que secavam suas roupas e bagagem depois da tempestade da última noite. Um padre, e dois outros homens, evidentemente acima do comum, pareciam ser os chefes do grupo. A bagagem estava empilhada de um lado do abrigo e as armas fincadas nas cordas que as amarravam. Havia uma grande fogueira no centro, onde um negro fervia café, e diversas pessoas em volta secavam as roupas. De um modo geral, os homens que encontramos, vindos das minas, são de raça fina e bela, de feição leve e ativa. Suas vestes são muito pitorescas. Consistem numa capa oval, forrada de cor brilhante, como rosa ou verde maçã, usada como os hispano-americanos usam o poncho. Os lados são frequentemente levantados para os ombros e deixam ver, por baixo, uma jaqueta de cor brilhante. Os calções são frouxos e alcançam o joelho. As botas são largas, de couro amarelo, e são vistas geralmente nos mais ricos, ainda que seja muito comum encontrar esporas sobre o calcanhar nu, e nenhuma bota ou calçado de qualquer espécie. As classes superiores têm geralmente belas pistolas e grandes facas. As outras contentam-se com um bom cacete. Uma rápida légua, desde a última casa de Campinho, trouxe-nos a Afonsos, onde apresentamos nossa carta e fomos recebidos do modo mais amável. A fazenda pertence de fato à avó, viúva do Sr. João Marcos, que é nativo de Santa Catarina. Sua mãe, irmã e irmão, e duas primas mudas, todos residem aqui, mas ele é somente um visitante ocasional, pois é casado e vive com a família da mulher. As moças mudas, que já não são jovens, são muito interessantes. Muito inteligentes, compreendem a maior parte do que se diz pelo movimento dos lábios, de modo que o primo falava em francês quando queria dizer qualquer coisa a respeito delas. Faziam-se compreender por sinais, muitos dos quais, posso mesmo dizer, a maior parte, seriam perfeitamente inteligíveis para os alunos de Sicar ou Braidwood. São parte de uma família de oito crianças, quatro das quais são mudas; as mudas e as falantes nasceram alternadamente. Uma delas fez para nós a primeira refeição, que consistiu em café e várias espécies de pão e manteiga.
Depois dó café, como o tempo continuava frio e chuvoso, fomos facilmente convencidos pelo nosso hospedeiro de que deveríamos permanecer o dia todo em Afonsos. Fiquei realmente contente com a oportunidade de despender um dia inteiro com uma família do campo. O primeiro lugar que visitamos após o café foi o engenho de açúcar, que é movido por burros. A maquinaria é bastante rude, mas parece corresponder aos intuitos.
A fazenda emprega 200 bois e 180 escravos como lavradores, além dos que fazem o serviço da família. A produção é de cerca de 3.000 arrobas de açúcar e 70 pipas de aguardente. As terras se estendem desde Tapera, onde encontramos os viajantes, e onde há 200 anos havia uma aldeia de índios mansos, até cerca de uma légua em direção a Piraquara. Há cerca de quarenta foreiros brancos, que mantêm vendas e outras úteis lojas nas margens das estradas e exercem as atividades manuais mais necessárias. Só uma pequena porção da fazenda, porém, é realmente cultivada. O resto está ainda coberto com a floresta primitiva. Esta é utilizada como combustível para as fornalhas de açúcar, madeira para maquinaria e, às vezes, para vender. Os proprietários de fazendas preferem contratar ou negros livres, ou negros alugados pelos senhores (119) para os serviços nas florestas, por causa dos numerosos acidentes que ocorrem na derrubada de árvores, especialmente nas posições escarpadas. A morte de um negro da fazenda é uma perda de valor; a de um negro alugado só dá lugar a uma pequena indenização; a perda de um negro livre significa frequentemente até a economia de seus salários, se ele não tiver filho para reclamá-los.
O trigo não medra nesta parte do Brasil ainda que nos distritos meridionais e montanhosos do interior viceje admiravelmente. O luxo do pão de trigo está introduzido por toda parte, com farinha proveniente da América do Norte. Por qualquer parte que se viaje nestas vizinhanças, pode-se estar certo de encontrar excelente pão duro em qualquer venda, ainda que o pão macio seja raro.
As canas de açúcar são plantadas aqui durante os meses de março, abril, maio, e mesmo junho e julho. Nas filas entre elas plantam-se pés de milho e de feijão, cujo cultivo é favorável à cana de açúcar. O feijão é colhido primeiro, quando o solo é mondado, limpo e afrouxado em torno das raízes das canas; em seguida é arrancado o milho, fazendo-se nova mondação e limpeza. Só depois disso o açúcar está bastante alto para ensombrar o terreno e evitar o nascimento de ervas más.
As primeiras canas ficam maduras em torno de maio. A cana Caiena produz mais e medra em terrenos baixos, e em solos mistos de areia e barro. A cana crioula ocupa o morro e, apesar de menos produtiva, supõe-se que produz açúcar de melhor qualidade. Os meses frios, de maio a setembro, são os mais propícios para ferver o açúcar. Depois de outubro as canas fornecem menos caldo, cerca de um oitavo, às vezes um quarto, e portanto perde-se mais argila para branquear o açúcar. Os potes de três arrobas não voltam, após a operação, com mais de duas e meia no máximo. O barro usado para refinação do açúcar é extraído perto do engenho. Dá a sensação de macio e grosso nos dedos. E colocado numa selha de madeira com uma quantidade de barrela feita pela embebição dos ramos de um pequeno arbusto com uma espécie de soda (120), e funciona para cima e para baixo com uma máquina, um pouco como a batedeira de manteiga, até que fica da consistência de um creme grosso, quando está pronto para o uso. Penso que o principal trabalho de espremer o caldo, fervê-lo, secar os açúcares, bem como clareá-lo, é feito aqui como em toda parte do mundo, apesar de que provavelmente possa haver alguma diferença em cada país, ou mesmo em cada engenho. Também a destilação das bebidas alcoólicas não pode ser muito diferente. Nada se desperdiça numa casa de açúcar; o bagaço que resta depois de espremidas as canas, quando seco, serve de combustível para aquecimento das fornalhas; a água doce refugada, que corre do alambique, é avidamente bebida pelos bois, que sempre parecem engordar com ela.
Quando acabamos de examinar o engenho de açúcar e ver o jardim, eram duas horas, e fomos chamados para almoçar. Tudo estava excelente no gênero, somente com um pouco mais de alho do que é usado na cozinha inglesa. Na mesa lateral havia uma grande travessa de farinha seca, que a parte mais velha da família pediu e usou em vez de pão. Eu preferi o prato de farinha umedecida com caldo, não muito diferente da papa de aveia, que foi oferecido com o cozido e linguiça em fatias, depois da sopa. O carneiro era da fazenda, pequeno, e muito macio. Tudo foi servido em baixela inglesa azul e branca. As toalhas e guardanapos eram de algodão lavrado, e havia bastante prata usada, mas não exposta. Após o almoço alguns membros da família retiraram-se para a sesta; outros dedicaram-se a bordados, que são muito belos e o resto entregou-se às ocupações da casa e à direção das escravas domésticas que, pela maior parte, nasceram na fazenda e foram educadas na casa da senhora. Vi crianças de todas as idades e cores, correndo de um lado para outro, que pareciam ser tão carinhosamente tratadas como se fossem da família. A escravidão, nestas condições, é muito aliviada e se aproxima antes da dos tempos patriarcais, quando a criada comprada se tornava, para todos os fins, uma pessoa da família. O grande mal está nisto: ainda que os senhores não tratem mal seus escravos, têm o poder de fazê-lo e o escravo está sujeito ao pior dos males contingentes, isto é, o capricho dos semieducados, ou de um senhor mal educado. Fossem todos os escravos bem tratados como os escravos domésticos dos Afonsos, onde a família reside constantemente e nada confia a estranhos, e a situação dessas pessoas poderia ser comparada, com vantagem, à dos criados livres. Mas o melhor é impossível, e o pior mais que provável, desde que um poder incontrolável de um ser falível pode se exercer sem censura sobre seus escravos.
Uma das moças mudas fez o chá e depois passamos um par de horas numa roda de jogo de cartas onde as irmãs se sentiram em perfeita igualdade com os falantes e, conseguintemente, divertiram-se. Lembro-me de uma narrativa feita pelo bispo Burnet (VIII), em suas viagens, de uma muda que descobrira um modo de comunicar-se com a irmã mesmo no escuro, antes da instrução de tal classe de pessoas desgraçadas se tornar um assunto de interesse público. Alguns desses métodos possuem estas senhoras, pois falam-se mutuamente, e fazem-se entender por sua jovem prima, menina inteligente, que está sempre a mão, para interpretá-las. Elas inventaram também sinais convencionais para os nomes das flores e plantas do jardim, sinais conhecidos por toda a família. Fiquei encantada com a rapidez e a precisão com que conversavam sobre qualquer assunto de seu conhecimento.
O jogo abrira caminho para a ceia, refeição quase tão cerimoniosa e tão constante como o almoço. Depois dela, foi servido queijo assado, com rodelas de bolo de farinha, torradas de fresco e untadas com muito pouca manteiga irlandesa; são a mesma coisa que o pão de Casava das Índias Ocidentais, mas preparados aqui aproximam-se mais dos bolos de aveia escoceses. Quando fui para meu quarto à noite, entrou uma bela e jovem escrava com uma grande bacia de água morna e uma toalha franjada sobre o braço e ofereceu-se para lavar-me os pés. Pareceu desapontada quando lhe disse que nunca permitia que ninguém me fizesse isso, ou me ajudasse a despir em qualquer tempo. De manhã ela voltou, e tirando o banho dos pés, trouxe toalhas novas, uma grande bacia de prata lavrada e um jarro, cheio de água morna, que deixou sem dizer palavra. Disse a sua senhora que eu era uma pessoa muito sossegada e que, pensava ela, não gostava de ninguém, a não ser de seu povo e, portanto, não me incomodaria.
  • Sexta-feira, 22 de agosto de 1823
O dia estava tão belo quanto possível, e depois do café prosseguimos nossa viagem a Santa Cruz. A estrada tornava-se cada vez mais bela à medida que avançávamos.
“Here lofty trees to ancient song unknown,
The noble sons of potent heat, and floods
Prone rushing from the clouds, rear’d high to heav’n
Their thorny stems, and broad around them threw
Meridian gloom.”
E, acima de todas estas coisas, as montanhas erguiam-se na distância. Mais perto de nós estavam montes mais baixos, entre os quais se estendiam amplos vales em que se perdia nosso olhar. Os flancos próximos estavam cheios de gigantescos aloés, regatos e lagoas. Manadas de gado passavam com seus guias pitorescamente vestidos. Perto de Campo Grande, o cenário muda: são diversas pequenas planícies verdes, só com algumas árvores isoladas, aqui e ali, decoradas de epífitas em flor e trepadeiras vermelhas. Para diante fica um dos mais belos lugares que jamais vi, isto é, Viaga (IX), onde rochas, árvores, campinas e construções tudo parece arrumado para ser admirado. Após vaguear um pouco para poder gozar o panorama, cavalgamos para a nova freguesia de Santo Antônio, onde paramos em uma venda muito limpa para descansar e alimentar nossos cavalos. A igreja fica num pequeno morro, dominando uma região muito bonita e uma limpa povoação, mas a parte mais vasta da paróquia fica muito distante. Enquanto os animais comiam o seu milho, obtivemos para nós um pouco de pão seco, queijo de Minas, exatamente o queijo grande escocês, e vinho do Porto de barril, de excelente qualidade. Estas provisões sempre se encontram, com feijão, toucinho e carne seca. Mas a hospitalidade num albergue brasileiro não compreende a cozinha para viajantes, que geralmente transportam consigo os utensílios para esse fim e que, nalgum telheiro acostado à hospedaria, cozinham para si mesmos, e geralmente dormem no mesmo abrigo. Em Santo Antônio há quartos de dormir decentes, providos de bancos e tapetes aos quais os hóspedes ajuntam a dormida que lhes agrada; mas os viajantes em geral envolvem-se em suas capas e assim ficam. Logo que nossos cavalos ficaram prontos, cavalgamos para a Mata da Paciência, engenho de D. Mariana, a filha mais velha da baronesa de Campos, e para a qual tínhamos uma carta de apresentação. Tivemos aqui uma recepção das mais polidas por parte de uma bela mulher, de tom senhoril, que encontramos na direção de seu engenho, o que é de fato interessante. Fomos recebidos primeiro pelo capelão, pessoa polida e bem informada; com ele estava o capelão de Santa Cruz que, por ter sido antes professor no colégio do Rio, é geralmente conhecido pelo nome de Padre Mestre (X).
D. Mariana conduziu-nos ao engenho, onde nos deram bancos colocados perto da máquina de espremer, que são movidos por um motor a vapor, da força de oito cavalos, uma das primeiras, senão exatamente a primeira instalada no Brasil. Há aqui 200 escravos, e outros tantos bois, em pleno emprego. A máquina a vapor além dos rolos compressores no engenho, move diversas serras, de modo que ela tem a vantagem de ter a sua madeira aparelhada quase sem despesa. Enquanto estávamos sentados junto à máquina, D. Mariana quis que as mulheres que estavam fornecendo as canas, cantassem, e elas começaram primeiro com algumas de suas selvagens canções africanas, com palavras adotadas no momento, adequadas à ocasião. Ela lhes disse então que cantassem os hinos à Virgem. Cantaram, então, com tom e ritmo regular com algumas vozes doces, a saudação angélica e outras canções. Acompanhamos D. Mariana dentro de casa onde verificamos que, enquanto nos ocupávamos em observar a maquinaria, as caldeiras e a destilaria, preparava-se o almoço para nós, apesar de já estar passada, há muito, a hora da família. A nossa partida fomos instados amavelmente a voltar, em nossa viagem de retorno ao Rio, coisa que nós, sem nenhuma repugnância, prometemos fazer.
Estava completamente escuro muito antes de chegarmos a Santa Cruz, e extremamente frio. Lá chegados, encontramos com facilidade a casa do cavalheiro para quem tínhamos uma carta de apresentação, o capitão de fragata João da Cruz dos Reis, que é o superintendente do palácio e da fazenda. O visconde do Rio Seco havia-nos fornecido amavelmente esta carta e explicado que o objetivo de nossa viagem era pura curiosidade, de modo que o capitão nos disse que no dia seguinte faria tudo para satisfazer-nos. Logo após a nossa chegada diversas pessoas procuraram-nos para uma conversa por meia hora, entre outros um cirurgião que vem do Rio uma vez por ano, para vacinar as crianças nascidas durante doze meses na Fazenda. O Padre Mestre e um outro frade também vieram. Em breve verifiquei que Santa Cruz tem sua política e sua tagarelice tanto quanto a cidade, e toda diferença consiste num refinamento maior ou menor. Nada pode ultrapassar a hospitalidade bem humorada de nossos hospedeiros, que logo fizeram com que nos sentíssemos à vontade, e, quando terminou o chá, estávamos bem iniciados em todos os caminhos da casa e da vila.

NYPL - Debret - Castelo Imperial de Santa Cruz e O Rochedo dos Arvoredos
NYPL - Debret - Castelo Imperial de Santa Cruz 
e O Rochedo dos Arvoredos
  • Sábado, 23 de agosto de 1823
A manhã estava excessivamente fria, mas clara, e a vista das extensas planícies de Santa Cruz, com os rebanhos de gado, é magnífica. Os pastos estendem-se por muitas léguas de cada lado do pequeno morro em que estão colocados o Palácio e a povoação; são aqui e ali interrompidos por tufos de floresta natural; por um lado o horizonte estende-se até o mar; por todos os outros lados a vista é limitada por montanhas ou morros cobertos de florestas. O próprio Palácio ocupa o lugar do velho Colégio dos Jesuítas. Três alas são modernas: a quarta contém a bela capela dos reverendíssimos padres e uns poucos aposentos aceitáveis. A parte nova foi feita pelo rei D. João VI, mas os trabalhos se interromperam com sua partida. Os apartamentos são belos e mobiliados com conforto. Neste clima as tapeçarias de parede, quer de papel, quer de seda, estão sujeitas a rápido estrago por causa da umidade e dos insetos. As paredes são pois rebocadas com um ótimo barro branco-amarelado rico e grosso, chamado Taboa Tinga [Tabatinga] (121) e as cornijas e barras pintadas a fresco. Algumas destas são extremamente belas quanto ao desenho. Geralmente são muito bem executados os arabescos das frisas, compostos de frutas, flores, pássaros e insetos do país. Uma das salas representa um pavilhão: e entre as pilastras abertas, está pintada a paisagem em torno de Santa Cruz, não muito bem, realmente; mas a peça é agradável e alegre. Os artistas empregados eram principalmente mulatos e negros crioulos.
Vila de São Francisco Xavier de Itaguaí - Desenho de Maria Graham
Vila de São Francisco Xavier de Itaguaí
Desenho de Maria Graham
Depois do café cavalgamos pela estrada calçada, que cruza a planície de Santa Cruz, até a aldeia indígena de São Francisco Xavier de Itaguaí, geralmente chamada Taguaí, fundada pelos jesuítas não muito tempo antes da expulsão (XI). A situação da aldeia e da igreja é muito bela; no cume de um morro, domina uma rica planície, banhada por um rio navegável e cercada de montanhas. Entramos em várias cabanas de índios que compreendi serem da nação guarani. Perguntei a uma das mulheres em cuja cabana me sentei se sabia de onde tinha vindo sua tribo. Ela disse que não, que ela havia sido trazida, quando simples criança, de uma grande distância de Taguaí, pelos padres da Companhia, que seu marido morrera quando ela era moça; e que ela e suas filhas sempre haviam morado ali; mas que seus filhos e netos, quando os padres da Companhia se foram, haviam voltado para seu país, com o que ela queria dizer que haviam reassumido a vida selvagem. Isto não causa surpresa. Os índios aqui precisam trabalhar para outros e tornarem-se criados, situação que eles dificilmente distinguem da escravidão. Além disso há escravos bastantes, e o negro é mais resistente que o índio, seu trabalho é mais rendoso; portanto, um índio desejoso de trabalhar nem sempre encontra senhor. O produto de seu pequeno terreno, ou de sua pescaria, é raramente suficiente para a família, e sem a ajuda do padre, cuja principal proteção consistia em obter-lhe ocupação permanente, o selvagem semi-domesticado desanima, e volta de novo para a liberdade de sua floresta, para sua caça e para sua pesca descontrolada. Os índios chilenos raramente, ou nunca, voltam às florestas uma vez organizadas suas aldeias, mas isto depende de circunstâncias que nada têm de comum com o estado do Brasil. Muitas das mulheres índias casaram-se com os portugueses crioulos; os casamentos entre mulheres crioulas e índios são mais raros. As crianças de tais uniões são mais belas e parecem mais inteligentes do que as de raça pura de qualquer dos lados. As cabanas indígenas de Taguaí são muito pobres, escassamente suficientes, nas paredes e teto, para defender do clima, e dotadas de pequenas redes para dormir e utensílios de cozinha. Contudo por toda parte éramos convidados a entrar e sentar. Todos os chãos estavam varridos com limpeza e havia geralmente um cepo de madeira, ou um banco rude, para assento do estrangeiro, enquanto os próprios habitantes se acocoravam no chão.
Ao pé do morro de Taguaí há um belo engenho vendido por D. João VI a Fuão de Barros; os cilindros são movidos por uma roda d’água horizontal de cerca de vinte e dois pés de diâmetro, acionada pelo pequeno rio Taguaí. A quantidade de açúcar fabricado em um dado tempo é pouco maior do que a produzida pelo engenho a vapor da Mata Paciência, sendo igual o número de escravos empregados.
Ponte dos Jesuítas em Santa Cruz
Ponte dos Jesuítas em Santa Cruz. Construída em 1752. 
Com a canalização das águas do Rio Guandu a ponte 
perdeu a sua função.
 
Após haver admirado bastante a limpeza do engenho e a beleza da situação, deixamos Taguaí para voltar a Santa Cruz e passamos novamente o rio Guandu, onde há uma guarda a cavalo junto à ponte. Exigem-se ali salvo-condutos dos viajantes ordinários, mas como tínhamos conosco um empregado de Santa Cruz, não fomos interrogados. O Guandu nasce na serra de Marapicu, no baronato de Itanhae [Itaguaí ?], e, após receber o Tingui (XII), passa pelo engenho de Palmares, ocupado pelo visconde de Merendal; há ali um cais onde a produção da vizinhança é embarcada e transportada para Sepetiba, pequeno porto na baía de Angra dos Reis, e dali é despachada para o Rio. O transporte para o Rio leva geralmente vinte e quatro horas.
Em 1810 houve a intenção de unir o Guandu com o Itaipu [Taipu] (XIII) por um curto canal. Por esse meio, não somente a produção deste distrito, mas da ilha Grande, seria transportada diretamente para o Rio, sem o risco da navegação fora da baía. Não sei por que o projeto foi abandonado.
Todas as vezes que passo por um bosque no Brasil, vejo plantas e flores novas, e uma riqueza de vegetação que parece inexaurível. Hoje vi flores de maracujá de cores que dantes nunca observara: verdes, róseas, escarlates, azuis; ananases selvagens de belo carmesim e púrpura; chá selvagem, ainda mais belo que o elegante arbusto chinês; palmeiras do brejo e inúmeras plantas aquáticas novas para mim. Em cada lagoazinha patos selvagens, frangos d’água e variedades de marrecos, nadam por ali com orgulho gracioso. A cada passo sentia-me inclinada a dizer com o poeta:
“Oh nature, how in every charm supreme!
Whose votaries feast on raptures ever new:
Oh, for the voice and fire of seraphim
To paint thy glories with devotion due!”
Depois do almoço passeei um pouco na aldeia dos negros. Há, creio eu, cerca de mil e quinhentos na fazenda, a maior parte dos quais pertence às fazendas em torno, ou feitorias, das quais creio que há três, Bom Jardim, Piperi e Serra: estas produzem café, feijão e milho (XIV). A vizinhança imediata de Santa Cruz é adequada para criação de gado, dos quais existem este ano cerca de quatro mil cabeças. Uma boa quantidade de pastagens é anualmente arrendada. Os negros de Santa Cruz não são alimentados e vestidos pelo Imperador, mas têm pequenos trechos de terra, e dispõem de metade de sexta-feira, todos os sábados, todos os domingos, e todos os feriados para trabalhar para si próprios, de modo que, no máximo, dedicam ao senhor quatro dias em troca da casa e da terra; alguns são dispensados até dos sinais externos da escravidão e as famílias alimentam-se e vestem-se sem a interferência do senhor. O Imperador adaptou grande parte de uma cômoda construção erigida por seu pai, destinada às cavalariças reais, para instalação de um hospital. Visitei-o e encontrei um cirurgião branco e um assistente negro, camas decentes e quartos bem ventilados. A cozinha estava limpa e o caldo, que foi tudo que encontrei cozido na hora da noite em que lá estive, estava bom. Havia cerca de sessenta doentes, a maior parte deles de simples feridas nos pés, alguns de pústulas, outros, de uma espécie de lepra causada pelo trabalho em terrenos úmidos, e uns poucos com elefantíase: as febres são muito raras, as doenças do pulmão não tão raras. Diversos hóspedes do hospital estavam ali unicamente pela velhice; um estava louco e havia uma grande sala de mulheres com crianças, de modo que, no total, considero o hospital como uma prova da saúde dos negros de Santa Cruz.
Batalhão Villagran Cabrita em Santa Cruz


Batalhão Villagran Cabrita situado no antigo Convento dos Jesuítas de Santa Cruz, posteriormente Palácio Real e Imperial de Santa Cruz.
  • Domingo, 24 de agosto de 1823
O dia de hoje provocou uma assembleia muito importante que demandou a capela de Santa Cruz. Compareceram todos os funcionários pertencentes ao palácio, com suas mulheres e crianças, também os lojistas da aldeia e vizinhanças, além de uma boa quantidade da população negra; todos mais bem vestidos que as pessoas da mesma classe em qualquer parte nesta região do Brasil.
Fui às plantações de chá, que ocupam muitos acres de um morro cheio de pedras, tal como suponho que seja o habitat favorito da planta na China. A introdução da cultura do chá no Brasil era um projeto favorito do rei Dom João VI, que trouxe as plantas e os tratadores da China com grande despesa. O chá produzido aqui e no Jardim Botânico é tido como de qualidade superior. Mas a quantidade é tão pequena que até agora não há a mais leve promessa de pagar a despesa com a cultura. Contudo estão as plantas tão viçosas, que não tenho dúvida de que em breve se espalharão e provavelmente ficarão como nativas. Sua Majestade construiu portões chineses e cabanas para corresponder ao destino destes jardins; colocados onde estão, entre os belos arbustos da erva, cujas folhas escuras e brilhantes e flores semelhantes à murta, as fazem adequadas para um canteiro, não produzem efeito desagradável. Os caminhos são bordados de cada lado de laranjeiras e rosais, e as sebes são de uma linda espécie de mimosa. De modo que a China de Santa Cruz é realmente um delicioso passeio. O imperador, porém, que compreendeu ser mais vantajoso vender café e comprar chá, do que obtê-lo com tais despesas, não continuou a plantação (XV).
Nossos amigos hospedeiros, o capitão e sua senhora, não nos permitiram abandoná-los até depois do almoço, e convidaram várias pessoas para nos fazerem sala e para um banquete suntuoso que prepararam; onde havia todas as coisas boas que podemos enumerar. Contudo, após honrar devidamente a mesa, despedimo-nos e cerca de quatro horas, pouco mais ou menos, partimos para a mata da Paciência, aonde chegamos um pouco antes do pôr do sol.
Ao chegarmos fomos com D. Mariana e o capelão para o jardim, que reúne as plantações de flores, a horta e o pomar. Laranjas e rosas, repolhos e tabaco, melões e alhos porrós se avizinhavam como se pertencessem ao mesmo clima, e todos vicejavam no meio de numerosas ervas más, das quais o salutífero calliloo e o esplêndido bálsamo mais me atraiam o olhar. Uma porta lateral levou-nos a um lindo campo, para onde se levaram cadeiras para que pudéssemos sentar e gozar a frescura da tarde. Dominando este campo há um morro íngreme cujo flanco se desbastou bastante: os jardins e os lotes de café dos negros ocupam o terreno da floresta. Este dia – bendito seja a instituição do sábado – é livre para os negros. Depois da missa pela manhã, estão livres para fazer o que quiserem. A maior parte deles corre para o morro para colher o café ou o milho, ou para preparar o terreno para estes, ou outros vegetais. Estavam exatamente começando a voltar da mata, cada qual com sua cestinha carregada de alguma coisa própria, coisa em que o senhor não tinha qualquer parte; e cada vez que um passava por mim e exibia com olhos brilhantes o pequeno tesouro, eu bendizia o sábado, dia de liberdade do escravo. Apareciam agora os últimos retardatários. O sol neste momento dourava somente os cumes dos morros. O gado acercava-se do pasto e abaixava-se impacientemente na porteira do curral; abrimo-la, entramos com eles, e cruzamos o pátio em que vivem os negros. Tudo era ali movimento, estavam em tratos com um espertalhão que, conhecendo a hora oportuna, tinha chegado para comprar o café recém-colhido. Alguns venderam-no assim. Outros preferiram guarda-lo e secá-lo e, então, aproveitando a oportunidade de um portador da Senhora à cidade, manda-lo para ali, onde ele obtém preço mais alto. Não me lembro de ter passado uma tarde tão agradável.
Depois da ceia tive uma longa conversa com D. Mariana sobre o preparo do açúcar, o cultivo da cana e os escravos, confirmando o que aprendi nos Afonsos. Ela também me diz, como ouvira antes, que os crioulos são menos dóceis e menos ativos que os negros novos. Penso que ambos os fenômenos podem ser explicados sem se recorrer à influência do clima. O negro novo tem a experiência do navio negreiro, do mercado, e do açoite empregado para exercitá-lo, de modo que, quando comprado, é dócil pelo medo e ativo por hábito. O crioulo é uma criança estragada, até que fica bastante forte para trabalhar; então, sem nenhum hábito prévio de atividade, espera-se que ele seja industrioso; tendo passado a existência a comer, beber e correr por aqui e ali, nos termos da igualdade familiar, espera-se que seja obediente; e sem que tenha cultivado nele nenhum sentimento moral, espera-se que revele logo sua gratidão pela indulgência e afinal sua fidelidade. Diz-me D. Mariana que nem metade dos negros nascidos na sua fazenda vivem até alcançar dez anos. Seria importante inquirir das causas deste mal, e se é generalizado.
Conversei também por muito tempo com o capelão sobre o estado geral do país. É ele natural de Pernambuco e, como é natural, resolutamente independente. É inútil dizer que tudo na maneira de viver da Mata da Paciência não é somente agradável, mas ainda elegante. E se as histórias dos velhos viajantes sobre a vida do campo dos brasileiros são verdadeiras, a mudança não só foi rápida, mas completa.
Segunda-feira, 25 de agosto de 1823
Fiquei muito triste por deixar esta manhã a Mata da Paciência, já que era tempo de voltar. Mas, como chegou a hora, partimos para os Afonsos.
Paramos no caminho para fazer alguns esboços e, no Campo Grande, para refrescar os animais; ficamos satisfeitos, porque o dia estava bem fresco, em partilhar um bom bife com a boa mulher da casa que nos acolheu, cozido de acordo com as nossas instruções. Foi o primeiro que ela viu na vida, lamentando todo o tempo que o seu almoço já estivesse acabado e que não houvesse tempo de cozinhar ou assar para nós. Mas a hospitalidade parece o caráter da terra.
Na nossa chegada aos Afonsos fomos recebidos como velhos amigos e muito instados a ficar uns dois dias, a fim de fazer excursões a alguns lugares pitorescos da vizinhança, que eu teria feito com prazer, mas meu jovem amigo, Mr. Dampier, não podia perder tempo. Tive, pois, de contentar-me em ouvir falar das belezas da lagoa de Jacarepaguá, Nossa Senhora da Pena, etc.
Terça-feira, 26 de agosto de 1823
Deixamos Afonsos a tempo esta manhã, e logo depois encontramos um grupo de viajantes de aspecto original. Vinha primeiro uma mulher antes bonita que feia, com um casaco de montaria azul e chapéu preto largo, montada como homem, depois três cavalheiros em fila indiana, todos com aspecto de Falstaffs, com enormes chapéus de palha e montados em cavalos bem arreados; seguia-se a criada, também escanchada com o porte-manteaux de sua senhora afivelado atrás dela, depois o criado, com três sacos de couro pendentes do arreio por longas correias, de modo que balançavam na altura dos estribos, e cujo tamanho e forma denotavam a presença de, pelo menos, uma camisa limpa, e, finalmente, um escravo descoberto com dois burros, um carregado de bagagens e provisões, e o outro como sobresselente. Todos saudaram-nos gravemente e cortesmente ao passar e imaginei que estava entre alguns dos viajantes de Gil Blas, na vizinhança de Oviedo ou Astorga, tão diferentes eram eles de qualquer coisa entre nós.
Paramos, naturalmente, em Campinho, para ver nossa amável hospedeira, Senhora Maria Rosa, e encontramo-la na casa de um vizinho, para onde fomos procura-la e a surpreendemos cercada por quatro das mais belas mulheres que vi no Brasil. Da varanda em que nos sentamos – falando com elas durante algum tempo, tivemos ensejo de admirar o campo em torno de Campinho, que estava inteiramente escondido pela chuva da primeira vez que passamos. E do mesmo gênero de beleza do resto que havíamos visto, distinguindo-se por um novo forte de barro, agora em construção num outeiro isolado, que domina a estrada para a capital através dos morros e da planície. A falta de um tal ponto de defesa foi sentida quando Duclerc desembarcou na baía de Angra dos Reis, no começo do último século, e marchou sem parar para a cidade.
Depois de alimentar os cavalos na muito linda estação de Rio Ferreira, dirigimo-nos para casa, e chegamos à residência de Mr. May a tempo de jantar, tendo feito uma excursão agradabilíssima e, quanto a mim, conhecendo melhor o Brasil e os brasileiros, nesses poucos dias passados mais inteiramente fora do alcance dos ingleses, do que em todo tempo que estive aqui antes.
Ao chegar em casa encontrei notícias de Lorde Cochrane, datadas de 9 de julho; estava a 6° de latitude sul e 32° de longitude oeste, quando metade da força, bandeiras, munições e armazenamento de Madeira, lhe haviam caído nas mãos, e ele ainda perseguia o resto, pretendendo depois seguir a D. João VI e as fragatas. Se ele pudesse separá-las, certamente as apresaria; mas sozinho, nas circunstâncias em que está, contra forças tão armadas e tripuladas, temo que seja impossível.
Ele já fez mais do que se poderia esperar, ou talvez mais que qualquer comandante, a não ser ele, poderia ter feito. Ele atribui muito à imprudência e à imbecilidade do inimigo, cujo plano de salvar um exército ele compara com o lençol de mármore de Sterne. Contudo os outros lhe fazem bastante justiça para sentir que não há faltas do inimigo que diminuam seu mérito, ou obscureçam a coragem necessária para seguir, atacar e tomar ao menos metade de uma esquadra de setenta navios (122) bem armada e provisionada e cheia de tropas veteranas.
Há uma carta de Lorde Cochrane às autoridades de Pernambuco publicada na gazeta. O Lorde, após mencionar seu bom êxito, e mencionar sua falta de tripulantes, diz: “Precisamos de marinheiros para terminar a guerra. Se Vossas Excelências pagarem 24 mil réis de prêmio, como no Rio de Janeiro, animando o governo a fazer o mesmo, prestarão um grande serviço ao país, Não falo em marinheiros portugueses, que são inimigos, mas marinheiros de qualquer outra nação”.
O Lorde explica adiante, em suas cartas para Pernambuco, as suas razões para perseguir, antes dos navios de guerra, os transportes, que constituíram os objetivos que tinha mais a peito; era o temor de que as tropas desembarcassem, como haviam ameaçado, em qualquer outro porto do Brasil, e cometessem novas hostilidades no Império. E conclui anunciando que envia diversas bandeiras tomadas do inimigo.
Notas da Autora:
  1. O salário é de uma pataca e meia a duas patacas por dia, além da comida.
  2. É trazida aos engenhos da região da lagoa de Jacarepaguá. Não tive ocasião de ver a planta inteira.
  3. Taboa tinga, argila branca muito bela, própria para fazer porcelana, muito abundante no Brasil, e, tanto quanto posso julgar, a mesma que se encontra nos vales do Chile.
  4. Está agora certo que João Félix (Pereira de Campos) dispunha pelo menos deste número.
Notas do Tradutor:
  1. O largo do Campinho é o ponto inicial da Estrada Real de Santa Cruz, que tem 40 km de extensão. (V. MOACIR SILVA, Quilômetro zero – Caminhos antigos – Estradas modernas, Rio, 1934, pg. 32).
  2. Morro da Mangueira.
  3. Morro do Pedregulho, rodeado pelas ruas São Luís Gonzaga e da Alegria. Um dos pontos mais aprazíveis dos arrabaldes do Rio, pela bela paisagem que dele se descortina. Nele está localizado hoje um dos mais importantes reservatórios de água da cidade.
  4. Pequena povoação na freguesia de Engenho-Novo. Informa MILLIET DE SAINT-ADOLPHE (Dicionário geográfico-histórico do Império do Brasil, Paris, 1845, I, 139) que seus moradores abriram um canal que ia ter à baía, por onde navegavam na maré montante, fazendo um ativo comércio dos gêneros que se consomem na capital.
  5. A Praia Pequena, no Engenho Novo, principiava na segunda ponte da Estrada Real de Santa Cruz e ia até a Estrada da Penha.
  6. Venda Grande ficava a duas léguas do Rio. “Por ficar à beira-mar e poderem os barcos carregar em seu porto café e outros gêneros para o Rio de Janeiro, é de muito trato”, diz MILLIET DE SAINT-ADOLPHE, Op. cit., pg. 762.
  7. Atual Campo dos Afonsos, onde está sediada a Escola de Aviação Militar.
  8. Gilbert Burnet (1643-1715), natural de Edimburgo, bispo de Salisbury, historiador e filantropo.
  9. Parece tratar-se de Vargem, ou Vargem dos Padres Bentos, conforme se vê na Carta Geographica da Capitania do Rio de Janeiro, de autoria do Sargento- mor Manuel Vieira Leão, copiada em 1801, pertencente ao Estado Maior do Exército, e reproduzida em MOACYR SILVA, Quilômetro zero, Rio, 1934, pg. 257.
  10. O cura de Santa Cruz, nomeado a 18 de dezembro de 1822, era o padre frei Antônio da Virgem Maria, franciscano. Cf. Mons. ANTÔNIO ALVES FERREIRA DOS SANTOS, A arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, Rio, 1914, pg. 172. O “colégio do Rio”, a que se refere a autora, deve ser o curso superior, “primeiro ensaio de ensino universitário entre nós”, que os franciscanos fundaram em 1776 no convento de Santo Antônio. O alvará de 11 de junho de 1776 aprovou esta criação. (Cf. Publicações do Arq. Nacional, vol. XX, 1922, pg. 181) e Frei BASÍLIO RÖWER, Os franciscanos no sul do Brasil durante o século XVIII (e outros estudos) 2.ª ed., Petrópolis, 1954, pg. 79.
  11. A vila de Itaguaí foi originariamente aldeia dos índios Tupiniquins, que o governador Martim de Sá trouxe de Porto Seguro em 1615, quando veio tomar conta do governo. A atual localização data de 1719. Foi elevada a vila em 1815 por D. João VI. (MILLIET DE St. ADOLPHE, Op. cit., I, 482).
  12. O rio Guandu é formado pelo rio Santana e pelo ribeirão das Lajes. O Guandu-mirim, afluente da margem esquerda, é que nasce na serra de Gericinó, antiga freguesia de Marapicu. Não conseguimos identificar o rio que a autora denomina Tingui. Talvez seja o pr6prio Itaguaí (ou Taguai), assim reproduzido por erro tipográfico, com o qual se liga o Guandu por meio de um canal, construído por benemerência do capitão-mor Manuel Pereira Ramos.
  13. O rio Taipu, que, após regar a freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, deságua no Iguaçu que desemboca na baía de Guanabara.
  14. A fazenda Imperial de Santa Cruz tinha três feitorias que lhe eram subordinadas: a de Peri-peri, a de Bom Jardim e a de Serra (ou Santarém). “A 1.ª achava-se estabelecida na baixada, a 2.ª numa garganta e a última nos altos da Serra do Mar. O Peri-peri, no distrito de Marapicu, foi aldeia de índios”. Em 10 de março de 1824, meses, portanto, após a visita de Maria Graham, foi nomeado administrador desta feitoria Felício Pinto Coelho de Mendonça, nada menos que o marido da marquesa de Santos, subordinado ao citado João da Cruz dos Reis. Cf. ALBERTO RANGEL, D. Pedro I e a marquesa de Santos, Rio, 1916, págs. 129, 384, n.º 85.
  15. Acerca da tentativa de uma colônia chinesa, vinda de Macau, em Santa Cruz, por iniciativa do conde de Linhares, v. OLIVEIRA LIMA, Dom João VI no Brasil, Rio, 1908, pg. 1.000.
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