Palácio de Santa Cruz em 1823 Desenho de Maria Graham |
- Quarta-feira, 20 de agosto de 1823
Há muito que desejava ver um pouco mais dos arredores do Rio, do que o
fizera até aqui, e resolvi cavalgar ao menos até Santa Cruz, cerca de
quatorze léguas da cidade. Como a estrada é muito trafegada para se
temerem acidentes extraordinários, e eu não sou tímida quanto aos
embaraços habituais, resolvi contratar um empregado negro e ir sozinha.
Esta resolução, porém, foi superada por Mr. e Mrs. May,
cujo irmão, Mr. Dampier, gentilmente se ofereceu para escoltar-me.
Confesso que tive muito prazer em ser aliviada da responsabilidade
absoluta de minha pessoa, e não fiquei pouco satisfeita por ter a
companhia de um jovem bem educado e inteligente, cujo gosto pelas
belezas pitorescas da natureza concorda com o meu. Penso que se há um
ponto em que os companheiros de viagem concordam decididamente, posto
que divirjam em idade, temperamento ou disposição, poderá sempre haver
paz e conversação agradável, mais especialmente se, como no nosso caso,
viajam a cavalo. Evita-se muito facilmente uma divergência de opinião
com uma referência a um cavalo, que pode sempre ir depressa ou devagar
demais, com o emprego da língua, ou do chicote, sem ofensa ao
companheiro bípede.
Fomos bem provados hoje. Tinha-me convencido de que, após haver
adiado nossa excursão de semana para semana, por um motivo ou por outro,
se não a começássemos hoje nunca mais partiríamos: e, por isso, apesar
da tarde ser o mais possível pouco prometedora, deixamos a casa do Sr.
May às 4 ½ de modo a chegar a Campinha [Campinho] (I), primeira parada,
para dormir, já que, ai de nós!, os animais não são como os meus cavalos
chilenos, que me transportariam vinte léguas num dia sem queixa.
Montamos, pois, o Sr. Dampier num cavalo alto e baio, de ossos grandes,
com uma cinta de pistolas afivelada em torno de si, um imenso chapéu de
palha e uma jaqueta curta, eu num cavalinho cinza, meu capote de
marinheiro sobre a sela, e, a não ser isso, vestida como habitualmente,
com um chapéu de palha de passeio e um costume cinza escuro. Nosso
pajem, Antônio, o mais alegre dos negros, ia numa mula, com o
porta-casacos de Mr. Dampier atrás e minha mala diante. Começamos pela
parte alta da cidade e percorremos a bem trafegada estrada para São
Cristóvão; depois de cruzar o pequeno morro à esquerda do Palácio (II),
entramos numa região completamente nova para mim. Da parte ocidental da
entrada do Rio de Janeiro uma serra montanhosa se estende junto ao mar
até a baía de Angra dos Reis, formada pela ilha Grande e pela de
Marambaia. Na parte setentrional dessa serra há uma planície, aqui e ali
interrompida de morros baixos, que se estende quase até a região mais
interior do Rio de Janeiro, e alcança, numa curva, a baía de Angra dos
Reis. Esta planície deve ter sido, em época não muito remota, coberta de
água, ligando essas duas baías, e insulando as montanhas acima
referidas. Através desta planície desenrola-se nossa estrada entre um
cenário grandioso de um lado e uma vista suave e linda de outro; mas à
noite ficou tudo escuro e nevoado. Os topos das montanhas estavam
cobertos de nuvens que despencavam impetuosamente pelos flancos e
através de suas pedras, e mesmo, uma vez ou outra, vinha delas um ruído
surdo do vento ainda que as rajadas ainda não nos alcançassem. Sob esta
espécie de nuvem passamos o pitoresco Pedregulha [Pedregulho ] (III), e o
pequeno porto de Benefica [Benfica] (IV), formado por um riacho. Em
breve alcançamos a Praia Pequena (V), onde uma boa cópia de produtos são
embarcados para a cidade. As nuvens haviam-se adensado ali tristemente e
as névoas das grandes montanhas haviam mudado de aspecto. Ainda assim
fomos adiante, abandonando completamente a baía. Passamos primeiro por
Venda Grande (VI), onde se deve comprar tudo que é preciso para o cavalo
ou para o viajante; depois Capon [Capão] do Bispo, bela aldeia, onde as
nuvens de chuva fizeram com que desejasse parar; depois a ponte de
pedra do Rio [de] Ferreira, onde a chuva, afinal, começou a cair em
grandes e frias bátegas. Depois tremendos golpes de vento começaram a
soprar das gargantas das montanhas e muito antes de alcançarmos Casca
d’ouro [Cascadura] a proteção de capas e guarda-chuvas tinha cessado de
ter valor. Poderíamos ter parado ali; mas como nos haviam dito que a
venda de Campinho era o melhor lugar para repouso, resolvemos continuar,
e, com algumas penas infligidas a meu cavalo para avançar, alcançamos a
venda. Mas, se é delicioso, depois de uma longa viagem a cavalo sob a
chuva numa noite escura e tempestuosa, chegar a um lugar de repouso, é,
pelo menos, tão desesperador ser recusado na porta em que se esperava
encontrar abrigo, com as roupas gotejantes e as pernas a tremer de frio;
e tal foi a nossa sina. Não havia nada que comer, nem lugar para nós,
nada para os cavalos, e assim saímos de novo a enfrentar a tempestade
impiedosa. Poucas jardas além, contudo, surgiu-nos uma casa de campo
baixa à beira da estrada e aí batemos. Um criado mulato veio
cautelosamente dos fundos da casa para reconhecer-nos. Tendo-se
certificado de que éramos realmente viajantes ingleses, molhados e
surpreendidos pela noite, abriu-nos a porta da frente e nos encontramos
diante de uma senhora de meia idade, muito simpática e de sua filhinha.
Chamava-se Maria Rosa d’Acunha [da Cunha]. O marido e o filho estavam
ausentes, a negócio, e ela e a menina estavam sozinhas. Logo que
mudamos nossas roupas molhadas e providenciamos quanto aos cavalos, que
nossa hospedeira pusera numa construção vazia, deu-nos ela café quente,
pão e queijo e estendeu seus cuidados hospitaleiros ao nosso negro. Deu a
Mr. Dampier a cama do filho e preparou uma cama para mim no quarto em
que ela e a criança dormiam. Esta gente pertencia à classe mais pobre
dos fazendeiros, já que não possuíam acima de quatro ou cinco escravos,
trabalhando duramente eles próprios. Parecem, porém, felizes, e,
asseguro, são muito hospitaleiros.
Fazenda dos Afonsos Desenho de Maria Graham |
- Quinta-feira, 21 de agosto de 1823
Esta manhã parecia ao menos tão ameaçadora como ontem, mas resolvemos
ir até o engenho dos Afonsos (VII) para cujo dono, Sr. João Marcos
Vieira, tínhamos cartas de apresentação de um amigo na cidade. Em
consequência, despedimo-nos de nossa amável anfitriã, que havia feito
café cedo para nós, e metemo-nos por uma légua de estrada bem bonita em
direção aos Afonsos. No lugar onde esta fazenda limita com Campinho há
um grande pouso com telhas, onde encontramos um grupo de viajantes,
vindos evidentemente de Minas, que secavam suas roupas e bagagem depois
da tempestade da última noite. Um padre, e dois outros homens,
evidentemente acima do comum, pareciam ser os chefes do grupo. A bagagem
estava empilhada de um lado do abrigo e as armas fincadas nas cordas
que as amarravam. Havia uma grande fogueira no centro, onde um negro
fervia café, e diversas pessoas em volta secavam as roupas. De um modo
geral, os homens que encontramos, vindos das minas, são de raça fina e
bela, de feição leve e ativa. Suas vestes são muito pitorescas.
Consistem numa capa oval, forrada de cor brilhante, como rosa ou verde
maçã, usada como os hispano-americanos usam o poncho. Os lados são
frequentemente levantados para os ombros e deixam ver, por baixo, uma
jaqueta de cor brilhante. Os calções são frouxos e alcançam o joelho. As
botas são largas, de couro amarelo, e são vistas geralmente nos mais
ricos, ainda que seja muito comum encontrar esporas sobre o calcanhar
nu, e nenhuma bota ou calçado de qualquer espécie. As classes superiores
têm geralmente belas pistolas e grandes facas. As outras contentam-se
com um bom cacete. Uma rápida légua, desde a última casa de Campinho,
trouxe-nos a Afonsos, onde apresentamos nossa carta e fomos recebidos do
modo mais amável. A fazenda pertence de fato à avó, viúva do Sr. João
Marcos, que é nativo de Santa Catarina. Sua mãe, irmã e irmão, e duas
primas mudas, todos residem aqui, mas ele é somente um visitante
ocasional, pois é casado e vive com a família da mulher. As moças mudas,
que já não são jovens, são muito interessantes. Muito inteligentes,
compreendem a maior parte do que se diz pelo movimento dos lábios, de
modo que o primo falava em francês quando queria dizer qualquer coisa a
respeito delas. Faziam-se compreender por sinais, muitos dos quais,
posso mesmo dizer, a maior parte, seriam perfeitamente inteligíveis para
os alunos de Sicar ou Braidwood. São parte de uma família de oito
crianças, quatro das quais são mudas; as mudas e as falantes nasceram
alternadamente. Uma delas fez para nós a primeira refeição, que
consistiu em café e várias espécies de pão e manteiga.
Depois dó café, como o tempo continuava frio e chuvoso, fomos
facilmente convencidos pelo nosso hospedeiro de que deveríamos
permanecer o dia todo em Afonsos. Fiquei realmente contente com a
oportunidade de despender um dia inteiro com uma família do campo. O
primeiro lugar que visitamos após o café foi o engenho de açúcar, que é
movido por burros. A maquinaria é bastante rude, mas parece corresponder
aos intuitos.
A fazenda emprega 200 bois e 180 escravos como lavradores, além dos
que fazem o serviço da família. A produção é de cerca de 3.000 arrobas
de açúcar e 70 pipas de aguardente. As terras se estendem desde Tapera,
onde encontramos os viajantes, e onde há 200 anos havia uma aldeia de
índios mansos, até cerca de uma légua em direção a Piraquara. Há cerca
de quarenta foreiros brancos, que mantêm vendas e outras úteis lojas nas
margens das estradas e exercem as atividades manuais mais necessárias.
Só uma pequena porção da fazenda, porém, é realmente cultivada. O resto
está ainda coberto com a floresta primitiva. Esta é utilizada como
combustível para as fornalhas de açúcar, madeira para maquinaria e, às
vezes, para vender. Os proprietários de fazendas preferem contratar ou
negros livres, ou negros alugados pelos senhores (119) para os serviços
nas florestas, por causa dos numerosos acidentes que ocorrem na
derrubada de árvores, especialmente nas posições escarpadas. A morte de
um negro da fazenda é uma perda de valor; a de um negro alugado só dá
lugar a uma pequena indenização; a perda de um negro livre significa
frequentemente até a economia de seus salários, se ele não tiver filho
para reclamá-los.
O trigo não medra nesta parte do Brasil ainda que nos distritos
meridionais e montanhosos do interior viceje admiravelmente. O luxo do
pão de trigo está introduzido por toda parte, com farinha proveniente da
América do Norte. Por qualquer parte que se viaje nestas vizinhanças,
pode-se estar certo de encontrar excelente pão duro em qualquer venda,
ainda que o pão macio seja raro.
As canas de açúcar são plantadas aqui durante os meses de março,
abril, maio, e mesmo junho e julho. Nas filas entre elas plantam-se pés
de milho e de feijão, cujo cultivo é favorável à cana de açúcar. O
feijão é colhido primeiro, quando o solo é mondado, limpo e afrouxado em
torno das raízes das canas; em seguida é arrancado o milho, fazendo-se
nova mondação e limpeza. Só depois disso o açúcar está bastante alto
para ensombrar o terreno e evitar o nascimento de ervas más.
As primeiras canas ficam maduras em torno de maio. A cana Caiena
produz mais e medra em terrenos baixos, e em solos mistos de areia e
barro. A cana crioula ocupa o morro e, apesar de menos produtiva,
supõe-se que produz açúcar de melhor qualidade. Os meses frios, de maio a
setembro, são os mais propícios para ferver o açúcar. Depois de outubro
as canas fornecem menos caldo, cerca de um oitavo, às vezes um quarto, e
portanto perde-se mais argila para branquear o açúcar. Os potes de três
arrobas não voltam, após a operação, com mais de duas e meia no máximo.
O barro usado para refinação do açúcar é extraído perto do engenho. Dá a
sensação de macio e grosso nos dedos. E colocado numa selha de madeira
com uma quantidade de barrela feita pela embebição dos ramos de um
pequeno arbusto com uma espécie de soda (120), e funciona para cima e
para baixo com uma máquina, um pouco como a batedeira de manteiga, até
que fica da consistência de um creme grosso, quando está pronto para o
uso. Penso que o principal trabalho de espremer o caldo, fervê-lo, secar
os açúcares, bem como clareá-lo, é feito aqui como em toda parte do
mundo, apesar de que provavelmente possa haver alguma diferença em cada
país, ou mesmo em cada engenho. Também a destilação das bebidas
alcoólicas não pode ser muito diferente. Nada se desperdiça numa casa de
açúcar; o bagaço que resta depois de espremidas as canas, quando seco,
serve de combustível para aquecimento das fornalhas; a água doce
refugada, que corre do alambique, é avidamente bebida pelos bois, que
sempre parecem engordar com ela.
Quando acabamos de examinar o engenho de açúcar e ver o jardim, eram
duas horas, e fomos chamados para almoçar. Tudo estava excelente no
gênero, somente com um pouco mais de alho do que é usado na cozinha
inglesa. Na mesa lateral havia uma grande travessa de farinha seca, que a
parte mais velha da família pediu e usou em vez de pão. Eu preferi o
prato de farinha umedecida com caldo, não muito diferente da papa de
aveia, que foi oferecido com o cozido e linguiça em fatias, depois da
sopa. O carneiro era da fazenda, pequeno, e muito macio. Tudo foi
servido em baixela inglesa azul e branca. As toalhas e guardanapos eram
de algodão lavrado, e havia bastante prata usada, mas não exposta. Após o
almoço alguns membros da família retiraram-se para a sesta; outros
dedicaram-se a bordados, que são muito belos e o resto entregou-se às
ocupações da casa e à direção das escravas domésticas que, pela maior
parte, nasceram na fazenda e foram educadas na casa da senhora. Vi
crianças de todas as idades e cores, correndo de um lado para outro, que
pareciam ser tão carinhosamente tratadas como se fossem da família. A
escravidão, nestas condições, é muito aliviada e se aproxima antes da
dos tempos patriarcais, quando a criada comprada se tornava, para todos
os fins, uma pessoa da família. O grande mal está nisto: ainda que os
senhores não tratem mal seus escravos, têm o poder de fazê-lo e o
escravo está sujeito ao pior dos males contingentes, isto é, o capricho
dos semieducados, ou de um senhor mal educado. Fossem todos os escravos
bem tratados como os escravos domésticos dos Afonsos, onde a família
reside constantemente e nada confia a estranhos, e a situação dessas
pessoas poderia ser comparada, com vantagem, à dos criados livres. Mas o
melhor é impossível, e o pior mais que provável, desde que um poder
incontrolável de um ser falível pode se exercer sem censura sobre seus
escravos.
Uma das moças mudas fez o chá e depois passamos um par de horas numa
roda de jogo de cartas onde as irmãs se sentiram em perfeita igualdade
com os falantes e, conseguintemente, divertiram-se. Lembro-me de uma
narrativa feita pelo bispo Burnet (VIII), em suas viagens, de uma muda
que descobrira um modo de comunicar-se com a irmã mesmo no escuro, antes
da instrução de tal classe de pessoas desgraçadas se tornar um assunto
de interesse público. Alguns desses métodos possuem estas senhoras, pois
falam-se mutuamente, e fazem-se entender por sua jovem prima, menina
inteligente, que está sempre a mão, para interpretá-las. Elas inventaram
também sinais convencionais para os nomes das flores e plantas do
jardim, sinais conhecidos por toda a família. Fiquei encantada com a
rapidez e a precisão com que conversavam sobre qualquer assunto de seu
conhecimento.
O jogo abrira caminho para a ceia, refeição quase tão cerimoniosa e
tão constante como o almoço. Depois dela, foi servido queijo assado, com
rodelas de bolo de farinha, torradas de fresco e untadas com muito
pouca manteiga irlandesa; são a mesma coisa que o pão de Casava das
Índias Ocidentais, mas preparados aqui aproximam-se mais dos bolos de
aveia escoceses. Quando fui para meu quarto à noite, entrou uma bela e
jovem escrava com uma grande bacia de água morna e uma toalha franjada
sobre o braço e ofereceu-se para lavar-me os pés. Pareceu desapontada
quando lhe disse que nunca permitia que ninguém me fizesse isso, ou me
ajudasse a despir em qualquer tempo. De manhã ela voltou, e tirando o
banho dos pés, trouxe toalhas novas, uma grande bacia de prata lavrada e
um jarro, cheio de água morna, que deixou sem dizer palavra. Disse a
sua senhora que eu era uma pessoa muito sossegada e que, pensava ela,
não gostava de ninguém, a não ser de seu povo e, portanto, não me
incomodaria.
- Sexta-feira, 22 de agosto de 1823
O dia estava tão belo quanto possível, e depois do café prosseguimos
nossa viagem a Santa Cruz. A estrada tornava-se cada vez mais bela à
medida que avançávamos.
“Here lofty trees to ancient song unknown,
The noble sons of potent heat, and floods
Prone rushing from the clouds, rear’d high to heav’n
Their thorny stems, and broad around them threw
Meridian gloom.”
E, acima de todas estas coisas, as montanhas erguiam-se na distância.
Mais perto de nós estavam montes mais baixos, entre os quais se
estendiam amplos vales em que se perdia nosso olhar. Os flancos próximos
estavam cheios de gigantescos aloés, regatos e lagoas. Manadas de gado
passavam com seus guias pitorescamente vestidos. Perto de Campo Grande, o
cenário muda: são diversas pequenas planícies verdes, só com algumas
árvores isoladas, aqui e ali, decoradas de epífitas em flor e
trepadeiras vermelhas. Para diante fica um dos mais belos lugares que
jamais vi, isto é, Viaga (IX), onde rochas, árvores, campinas e
construções tudo parece arrumado para ser admirado. Após vaguear um
pouco para poder gozar o panorama, cavalgamos para a nova freguesia de
Santo Antônio, onde paramos em uma venda muito limpa para descansar e
alimentar nossos cavalos. A igreja fica num pequeno morro, dominando uma
região muito bonita e uma limpa povoação, mas a parte mais vasta da
paróquia fica muito distante. Enquanto os animais comiam o seu milho,
obtivemos para nós um pouco de pão seco, queijo de Minas, exatamente o
queijo grande escocês, e vinho do Porto de barril, de excelente
qualidade. Estas provisões sempre se encontram, com feijão, toucinho e
carne seca. Mas a hospitalidade num albergue brasileiro não compreende a
cozinha para viajantes, que geralmente transportam consigo os
utensílios para esse fim e que, nalgum telheiro acostado à hospedaria,
cozinham para si mesmos, e geralmente dormem no mesmo abrigo. Em Santo
Antônio há quartos de dormir decentes, providos de bancos e tapetes aos
quais os hóspedes ajuntam a dormida que lhes agrada; mas os viajantes em
geral envolvem-se em suas capas e assim ficam. Logo que nossos cavalos
ficaram prontos, cavalgamos para a Mata da Paciência, engenho de D.
Mariana, a filha mais velha da baronesa de Campos, e para a qual
tínhamos uma carta de apresentação. Tivemos aqui uma recepção das mais
polidas por parte de uma bela mulher, de tom senhoril, que encontramos
na direção de seu engenho, o que é de fato interessante. Fomos recebidos
primeiro pelo capelão, pessoa polida e bem informada; com ele estava o
capelão de Santa Cruz que, por ter sido antes professor no colégio do
Rio, é geralmente conhecido pelo nome de Padre Mestre (X).
D. Mariana conduziu-nos ao engenho, onde nos deram bancos colocados
perto da máquina de espremer, que são movidos por um motor a vapor, da
força de oito cavalos, uma das primeiras, senão exatamente a primeira
instalada no Brasil. Há aqui 200 escravos, e outros tantos bois, em
pleno emprego. A máquina a vapor além dos rolos compressores no engenho,
move diversas serras, de modo que ela tem a vantagem de ter a sua
madeira aparelhada quase sem despesa. Enquanto estávamos sentados junto à
máquina, D. Mariana quis que as mulheres que estavam fornecendo as
canas, cantassem, e elas começaram primeiro com algumas de suas
selvagens canções africanas, com palavras adotadas no momento, adequadas
à ocasião. Ela lhes disse então que cantassem os hinos à Virgem.
Cantaram, então, com tom e ritmo regular com algumas vozes doces, a
saudação angélica e outras canções. Acompanhamos D. Mariana dentro de
casa onde verificamos que, enquanto nos ocupávamos em observar a
maquinaria, as caldeiras e a destilaria, preparava-se o almoço para nós,
apesar de já estar passada, há muito, a hora da família. A nossa
partida fomos instados amavelmente a voltar, em nossa viagem de retorno
ao Rio, coisa que nós, sem nenhuma repugnância, prometemos fazer.
Estava completamente escuro muito antes de chegarmos a Santa Cruz, e
extremamente frio. Lá chegados, encontramos com facilidade a casa do
cavalheiro para quem tínhamos uma carta de apresentação, o capitão de
fragata João da Cruz dos Reis, que é o superintendente do palácio e da
fazenda. O visconde do Rio Seco havia-nos fornecido amavelmente esta
carta e explicado que o objetivo de nossa viagem era pura curiosidade,
de modo que o capitão nos disse que no dia seguinte faria tudo para
satisfazer-nos. Logo após a nossa chegada diversas pessoas
procuraram-nos para uma conversa por meia hora, entre outros um
cirurgião que vem do Rio uma vez por ano, para vacinar as crianças
nascidas durante doze meses na Fazenda. O Padre Mestre e um outro frade
também vieram. Em breve verifiquei que Santa Cruz tem sua política e sua
tagarelice tanto quanto a cidade, e toda diferença consiste num
refinamento maior ou menor. Nada pode ultrapassar a hospitalidade bem
humorada de nossos hospedeiros, que logo fizeram com que nos sentíssemos
à vontade, e, quando terminou o chá, estávamos bem iniciados em todos
os caminhos da casa e da vila.
e O Rochedo dos Arvoredos
- Sábado, 23 de agosto de 1823
A manhã estava excessivamente fria, mas clara, e a vista das extensas
planícies de Santa Cruz, com os rebanhos de gado, é magnífica. Os
pastos estendem-se por muitas léguas de cada lado do pequeno morro em
que estão colocados o Palácio e a povoação; são aqui e ali interrompidos
por tufos de floresta natural; por um lado o horizonte estende-se até o
mar; por todos os outros lados a vista é limitada por montanhas ou
morros cobertos de florestas. O próprio Palácio ocupa o lugar do velho
Colégio dos Jesuítas. Três alas são modernas: a quarta contém a bela
capela dos reverendíssimos padres e uns poucos aposentos aceitáveis. A
parte nova foi feita pelo rei D. João VI, mas os trabalhos se
interromperam com sua partida. Os apartamentos são belos e mobiliados
com conforto. Neste clima as tapeçarias de parede, quer de papel, quer
de seda, estão sujeitas a rápido estrago por causa da umidade e dos
insetos. As paredes são pois rebocadas com um ótimo barro
branco-amarelado rico e grosso, chamado Taboa Tinga [Tabatinga] (121) e
as cornijas e barras pintadas a fresco. Algumas destas são extremamente
belas quanto ao desenho. Geralmente são muito bem executados os
arabescos das frisas, compostos de frutas, flores, pássaros e insetos do
país. Uma das salas representa um pavilhão: e entre as pilastras
abertas, está pintada a paisagem em torno de Santa Cruz, não muito bem,
realmente; mas a peça é agradável e alegre. Os artistas empregados eram
principalmente mulatos e negros crioulos.
Vila de São Francisco Xavier de Itaguaí Desenho de Maria Graham |
Depois do café cavalgamos pela estrada calçada, que cruza a planície
de Santa Cruz, até a aldeia indígena de São Francisco Xavier de Itaguaí,
geralmente chamada Taguaí, fundada pelos jesuítas não muito tempo antes
da expulsão (XI). A situação da aldeia e da igreja é muito bela; no
cume de um morro, domina uma rica planície, banhada por um rio navegável
e cercada de montanhas. Entramos em várias cabanas de índios que
compreendi serem da nação guarani. Perguntei a uma das mulheres em cuja
cabana me sentei se sabia de onde tinha vindo sua tribo. Ela disse que
não, que ela havia sido trazida, quando simples criança, de uma grande
distância de Taguaí, pelos padres da Companhia, que seu marido morrera
quando ela era moça; e que ela e suas filhas sempre haviam morado ali;
mas que seus filhos e netos, quando os padres da Companhia se foram,
haviam voltado para seu país, com o que ela queria dizer que haviam
reassumido a vida selvagem. Isto não causa surpresa. Os índios aqui
precisam trabalhar para outros e tornarem-se criados, situação que eles
dificilmente distinguem da escravidão. Além disso há escravos bastantes,
e o negro é mais resistente que o índio, seu trabalho é mais rendoso;
portanto, um índio desejoso de trabalhar nem sempre encontra senhor. O
produto de seu pequeno terreno, ou de sua pescaria, é raramente
suficiente para a família, e sem a ajuda do padre, cuja principal
proteção consistia em obter-lhe ocupação permanente, o selvagem
semi-domesticado desanima, e volta de novo para a liberdade de sua
floresta, para sua caça e para sua pesca descontrolada. Os índios
chilenos raramente, ou nunca, voltam às florestas uma vez organizadas
suas aldeias, mas isto depende de circunstâncias que nada têm de comum
com o estado do Brasil. Muitas das mulheres índias casaram-se com os
portugueses crioulos; os casamentos entre mulheres crioulas e índios são
mais raros. As crianças de tais uniões são mais belas e parecem mais
inteligentes do que as de raça pura de qualquer dos lados. As cabanas
indígenas de Taguaí são muito pobres, escassamente suficientes, nas
paredes e teto, para defender do clima, e dotadas de pequenas redes para
dormir e utensílios de cozinha. Contudo por toda parte éramos
convidados a entrar e sentar. Todos os chãos estavam varridos com
limpeza e havia geralmente um cepo de madeira, ou um banco rude, para
assento do estrangeiro, enquanto os próprios habitantes se acocoravam no
chão.
Ao pé do morro de Taguaí há um belo engenho vendido por D. João VI a Fuão de Barros; os cilindros são movidos por uma roda d’água horizontal de cerca de vinte e dois pés de diâmetro, acionada pelo pequeno rio Taguaí. A quantidade de açúcar fabricado em um dado tempo é pouco maior do que a produzida pelo engenho a vapor da Mata Paciência, sendo igual o número de escravos empregados.
Ao pé do morro de Taguaí há um belo engenho vendido por D. João VI a Fuão de Barros; os cilindros são movidos por uma roda d’água horizontal de cerca de vinte e dois pés de diâmetro, acionada pelo pequeno rio Taguaí. A quantidade de açúcar fabricado em um dado tempo é pouco maior do que a produzida pelo engenho a vapor da Mata Paciência, sendo igual o número de escravos empregados.
Ponte dos Jesuítas em Santa Cruz. Construída em 1752.
Com a canalização das águas do Rio Guandu a ponte
perdeu a sua função.
Após haver admirado bastante a limpeza do engenho e a beleza da
situação, deixamos Taguaí para voltar a Santa Cruz e passamos novamente o
rio Guandu, onde há uma guarda a cavalo junto à ponte. Exigem-se ali
salvo-condutos dos viajantes ordinários, mas como tínhamos conosco um
empregado de Santa Cruz, não fomos interrogados. O Guandu nasce na serra
de Marapicu, no baronato de Itanhae [Itaguaí ?], e, após receber o
Tingui (XII), passa pelo engenho de Palmares, ocupado pelo visconde de
Merendal; há ali um cais onde a produção da vizinhança é embarcada e
transportada para Sepetiba, pequeno porto na baía de Angra dos Reis, e
dali é despachada para o Rio. O transporte para o Rio leva geralmente
vinte e quatro horas.
Em 1810 houve a intenção de unir o Guandu com o Itaipu [Taipu] (XIII)
por um curto canal. Por esse meio, não somente a produção deste
distrito, mas da ilha Grande, seria transportada diretamente para o Rio,
sem o risco da navegação fora da baía. Não sei por que o projeto foi
abandonado.
Todas as vezes que passo por um bosque no Brasil, vejo plantas e
flores novas, e uma riqueza de vegetação que parece inexaurível. Hoje vi
flores de maracujá de cores que dantes nunca observara: verdes, róseas,
escarlates, azuis; ananases selvagens de belo carmesim e púrpura; chá
selvagem, ainda mais belo que o elegante arbusto chinês; palmeiras do
brejo e inúmeras plantas aquáticas novas para mim. Em cada lagoazinha
patos selvagens, frangos d’água e variedades de marrecos, nadam por ali
com orgulho gracioso. A cada passo sentia-me inclinada a dizer com o
poeta:
“Oh nature, how in every charm supreme!
Whose votaries feast on raptures ever new:
Oh, for the voice and fire of seraphim
To paint thy glories with devotion due!”
Depois do almoço passeei um pouco na aldeia dos negros. Há, creio eu,
cerca de mil e quinhentos na fazenda, a maior parte dos quais pertence
às fazendas em torno, ou feitorias, das quais creio que há três, Bom
Jardim, Piperi e Serra: estas produzem café, feijão e milho (XIV). A
vizinhança imediata de Santa Cruz é adequada para criação de gado, dos
quais existem este ano cerca de quatro mil cabeças. Uma boa quantidade
de pastagens é anualmente arrendada. Os negros de Santa Cruz não são
alimentados e vestidos pelo Imperador, mas têm pequenos trechos de
terra, e dispõem de metade de sexta-feira, todos os sábados, todos os
domingos, e todos os feriados para trabalhar para si próprios, de modo
que, no máximo, dedicam ao senhor quatro dias em troca da casa e da
terra; alguns são dispensados até dos sinais externos da escravidão e as
famílias alimentam-se e vestem-se sem a interferência do senhor. O
Imperador adaptou grande parte de uma cômoda construção erigida por seu
pai, destinada às cavalariças reais, para instalação de um hospital.
Visitei-o e encontrei um cirurgião branco e um assistente negro, camas
decentes e quartos bem ventilados. A cozinha estava limpa e o caldo, que
foi tudo que encontrei cozido na hora da noite em que lá estive, estava
bom. Havia cerca de sessenta doentes, a maior parte deles de simples
feridas nos pés, alguns de pústulas, outros, de uma espécie de lepra
causada pelo trabalho em terrenos úmidos, e uns poucos com elefantíase:
as febres são muito raras, as doenças do pulmão não tão raras. Diversos
hóspedes do hospital estavam ali unicamente pela velhice; um estava
louco e havia uma grande sala de mulheres com crianças, de modo que, no
total, considero o hospital como uma prova da saúde dos negros de Santa
Cruz.
- Domingo, 24 de agosto de 1823
O dia de hoje provocou uma assembleia muito importante que demandou a
capela de Santa Cruz. Compareceram todos os funcionários pertencentes
ao palácio, com suas mulheres e crianças, também os lojistas da aldeia e
vizinhanças, além de uma boa quantidade da população negra; todos mais
bem vestidos que as pessoas da mesma classe em qualquer parte nesta
região do Brasil.
Fui às plantações de chá, que ocupam muitos acres de um morro cheio de pedras, tal como suponho que seja o habitat
favorito da planta na China. A introdução da cultura do chá no Brasil
era um projeto favorito do rei Dom João VI, que trouxe as plantas e os
tratadores da China com grande despesa. O chá produzido aqui e no Jardim
Botânico é tido como de qualidade superior. Mas a quantidade é tão
pequena que até agora não há a mais leve promessa de pagar a despesa com
a cultura. Contudo estão as plantas tão viçosas, que não tenho dúvida
de que em breve se espalharão e provavelmente ficarão como nativas. Sua
Majestade construiu portões chineses e cabanas para corresponder ao
destino destes jardins; colocados onde estão, entre os belos arbustos da
erva, cujas folhas escuras e brilhantes e flores semelhantes à murta,
as fazem adequadas para um canteiro, não produzem efeito desagradável.
Os caminhos são bordados de cada lado de laranjeiras e rosais, e as
sebes são de uma linda espécie de mimosa. De modo que a China de Santa
Cruz é realmente um delicioso passeio. O imperador, porém, que
compreendeu ser mais vantajoso vender café e comprar chá, do que obtê-lo
com tais despesas, não continuou a plantação (XV).
Nossos amigos hospedeiros, o capitão e sua senhora, não nos
permitiram abandoná-los até depois do almoço, e convidaram várias
pessoas para nos fazerem sala e para um banquete suntuoso que
prepararam; onde havia todas as coisas boas que podemos enumerar.
Contudo, após honrar devidamente a mesa, despedimo-nos e cerca de quatro
horas, pouco mais ou menos, partimos para a mata da Paciência, aonde
chegamos um pouco antes do pôr do sol.
Ao chegarmos fomos com D. Mariana e o capelão para o jardim, que
reúne as plantações de flores, a horta e o pomar. Laranjas e rosas,
repolhos e tabaco, melões e alhos porrós se avizinhavam como se
pertencessem ao mesmo clima, e todos vicejavam no meio de numerosas
ervas más, das quais o salutífero calliloo e o esplêndido bálsamo
mais me atraiam o olhar. Uma porta lateral levou-nos a um lindo campo,
para onde se levaram cadeiras para que pudéssemos sentar e gozar a
frescura da tarde. Dominando este campo há um morro íngreme cujo flanco
se desbastou bastante: os jardins e os lotes de café dos negros ocupam o
terreno da floresta. Este dia – bendito seja a instituição do sábado – é
livre para os negros. Depois da missa pela manhã, estão livres para
fazer o que quiserem. A maior parte deles corre para o morro para colher
o café ou o milho, ou para preparar o terreno para estes, ou outros
vegetais. Estavam exatamente começando a voltar da mata, cada qual com
sua cestinha carregada de alguma coisa própria, coisa em que o senhor
não tinha qualquer parte; e cada vez que um passava por mim e exibia com
olhos brilhantes o pequeno tesouro, eu bendizia o sábado, dia de
liberdade do escravo. Apareciam agora os últimos retardatários. O sol
neste momento dourava somente os cumes dos morros. O gado acercava-se do
pasto e abaixava-se impacientemente na porteira do curral; abrimo-la,
entramos com eles, e cruzamos o pátio em que vivem os negros. Tudo era
ali movimento, estavam em tratos com um espertalhão que, conhecendo a
hora oportuna, tinha chegado para comprar o café recém-colhido. Alguns
venderam-no assim. Outros preferiram guarda-lo e secá-lo e, então,
aproveitando a oportunidade de um portador da Senhora à cidade, manda-lo
para ali, onde ele obtém preço mais alto. Não me lembro de ter passado
uma tarde tão agradável.
Depois da ceia tive uma longa conversa com D. Mariana sobre o preparo
do açúcar, o cultivo da cana e os escravos, confirmando o que aprendi
nos Afonsos. Ela também me diz, como ouvira antes, que os crioulos são
menos dóceis e menos ativos que os negros novos. Penso que ambos os
fenômenos podem ser explicados sem se recorrer à influência do clima. O
negro novo tem a experiência do navio negreiro, do mercado, e do açoite
empregado para exercitá-lo, de modo que, quando comprado, é dócil pelo
medo e ativo por hábito. O crioulo é uma criança estragada, até que fica
bastante forte para trabalhar; então, sem nenhum hábito prévio de
atividade, espera-se que ele seja industrioso; tendo passado a
existência a comer, beber e correr por aqui e ali, nos termos da
igualdade familiar, espera-se que seja obediente; e sem que tenha
cultivado nele nenhum sentimento moral, espera-se que revele logo sua
gratidão pela indulgência e afinal sua fidelidade. Diz-me D. Mariana que
nem metade dos negros nascidos na sua fazenda vivem até alcançar dez
anos. Seria importante inquirir das causas deste mal, e se é
generalizado.
Conversei também por muito tempo com o capelão sobre o estado geral
do país. É ele natural de Pernambuco e, como é natural, resolutamente
independente. É inútil dizer que tudo na maneira de viver da Mata da
Paciência não é somente agradável, mas ainda elegante. E se as histórias
dos velhos viajantes sobre a vida do campo dos brasileiros são
verdadeiras, a mudança não só foi rápida, mas completa.
Segunda-feira, 25 de agosto de 1823
Fiquei muito triste por deixar esta manhã a Mata da Paciência, já que
era tempo de voltar. Mas, como chegou a hora, partimos para os Afonsos.
Paramos no caminho para fazer alguns esboços e, no Campo Grande, para
refrescar os animais; ficamos satisfeitos, porque o dia estava bem
fresco, em partilhar um bom bife com a boa mulher da casa que nos
acolheu, cozido de acordo com as nossas instruções. Foi o primeiro que
ela viu na vida, lamentando todo o tempo que o seu almoço já estivesse
acabado e que não houvesse tempo de cozinhar ou assar para nós. Mas a
hospitalidade parece o caráter da terra.
Na nossa chegada aos Afonsos fomos recebidos como velhos amigos e
muito instados a ficar uns dois dias, a fim de fazer excursões a alguns
lugares pitorescos da vizinhança, que eu teria feito com prazer, mas meu
jovem amigo, Mr. Dampier, não podia perder tempo. Tive, pois, de
contentar-me em ouvir falar das belezas da lagoa de Jacarepaguá, Nossa
Senhora da Pena, etc.
Terça-feira, 26 de agosto de 1823
Deixamos Afonsos a tempo esta manhã, e logo depois encontramos um
grupo de viajantes de aspecto original. Vinha primeiro uma mulher antes
bonita que feia, com um casaco de montaria azul e chapéu preto largo,
montada como homem, depois três cavalheiros em fila indiana, todos com
aspecto de Falstaffs, com enormes chapéus de palha e montados em cavalos
bem arreados; seguia-se a criada, também escanchada com o porte-manteaux
de sua senhora afivelado atrás dela, depois o criado, com três sacos de
couro pendentes do arreio por longas correias, de modo que balançavam
na altura dos estribos, e cujo tamanho e forma denotavam a presença de,
pelo menos, uma camisa limpa, e, finalmente, um escravo descoberto com
dois burros, um carregado de bagagens e provisões, e o outro como
sobresselente. Todos saudaram-nos gravemente e cortesmente ao passar e
imaginei que estava entre alguns dos viajantes de Gil Blas, na
vizinhança de Oviedo ou Astorga, tão diferentes eram eles de qualquer
coisa entre nós.
Paramos, naturalmente, em Campinho, para ver nossa amável hospedeira,
Senhora Maria Rosa, e encontramo-la na casa de um vizinho, para onde
fomos procura-la e a surpreendemos cercada por quatro das mais belas
mulheres que vi no Brasil. Da varanda em que nos sentamos – falando com
elas durante algum tempo, tivemos ensejo de admirar o campo em torno de
Campinho, que estava inteiramente escondido pela chuva da primeira vez
que passamos. E do mesmo gênero de beleza do resto que havíamos visto,
distinguindo-se por um novo forte de barro, agora em construção num
outeiro isolado, que domina a estrada para a capital através dos morros e
da planície. A falta de um tal ponto de defesa foi sentida quando
Duclerc desembarcou na baía de Angra dos Reis, no começo do último
século, e marchou sem parar para a cidade.
Depois de alimentar os cavalos na muito linda estação de Rio Ferreira, dirigimo-nos para casa, e chegamos à residência de Mr.
May a tempo de jantar, tendo feito uma excursão agradabilíssima e,
quanto a mim, conhecendo melhor o Brasil e os brasileiros, nesses poucos
dias passados mais inteiramente fora do alcance dos ingleses, do que em
todo tempo que estive aqui antes.
Ao chegar em casa encontrei notícias de Lorde Cochrane, datadas de 9
de julho; estava a 6° de latitude sul e 32° de longitude oeste, quando
metade da força, bandeiras, munições e armazenamento de Madeira, lhe
haviam caído nas mãos, e ele ainda perseguia o resto, pretendendo depois
seguir a D. João VI e as fragatas. Se ele pudesse separá-las,
certamente as apresaria; mas sozinho, nas circunstâncias em que está,
contra forças tão armadas e tripuladas, temo que seja impossível.
Ele já fez mais do que se poderia esperar, ou talvez mais que
qualquer comandante, a não ser ele, poderia ter feito. Ele atribui muito
à imprudência e à imbecilidade do inimigo, cujo plano de salvar um
exército ele compara com o lençol de mármore de Sterne. Contudo os
outros lhe fazem bastante justiça para sentir que não há faltas do
inimigo que diminuam seu mérito, ou obscureçam a coragem necessária para
seguir, atacar e tomar ao menos metade de uma esquadra de setenta
navios (122) bem armada e provisionada e cheia de tropas veteranas.
Há uma carta de Lorde Cochrane às autoridades de Pernambuco publicada
na gazeta. O Lorde, após mencionar seu bom êxito, e mencionar sua falta
de tripulantes, diz: “Precisamos de marinheiros para terminar a guerra.
Se Vossas Excelências pagarem 24 mil réis de prêmio, como no Rio de
Janeiro, animando o governo a fazer o mesmo, prestarão um grande serviço
ao país, Não falo em marinheiros portugueses, que são inimigos, mas
marinheiros de qualquer outra nação”.
O Lorde explica adiante, em suas cartas para Pernambuco, as suas
razões para perseguir, antes dos navios de guerra, os transportes, que
constituíram os objetivos que tinha mais a peito; era o temor de que as
tropas desembarcassem, como haviam ameaçado, em qualquer outro porto do
Brasil, e cometessem novas hostilidades no Império. E conclui anunciando
que envia diversas bandeiras tomadas do inimigo.
Notas da Autora:
- O salário é de uma pataca e meia a duas patacas por dia, além da comida.
- É trazida aos engenhos da região da lagoa de Jacarepaguá. Não tive ocasião de ver a planta inteira.
- Taboa tinga, argila branca muito bela, própria para fazer porcelana, muito abundante no Brasil, e, tanto quanto posso julgar, a mesma que se encontra nos vales do Chile.
- Está agora certo que João Félix (Pereira de Campos) dispunha pelo menos deste número.
Notas do Tradutor:
- O largo do Campinho é o ponto inicial da Estrada Real de Santa Cruz, que tem 40 km de extensão. (V. MOACIR SILVA, Quilômetro zero – Caminhos antigos – Estradas modernas, Rio, 1934, pg. 32).
- Morro da Mangueira.
- Morro do Pedregulho, rodeado pelas ruas São Luís Gonzaga e da Alegria. Um dos pontos mais aprazíveis dos arrabaldes do Rio, pela bela paisagem que dele se descortina. Nele está localizado hoje um dos mais importantes reservatórios de água da cidade.
- Pequena povoação na freguesia de Engenho-Novo. Informa MILLIET DE SAINT-ADOLPHE (Dicionário geográfico-histórico do Império do Brasil, Paris, 1845, I, 139) que seus moradores abriram um canal que ia ter à baía, por onde navegavam na maré montante, fazendo um ativo comércio dos gêneros que se consomem na capital.
- A Praia Pequena, no Engenho Novo, principiava na segunda ponte da Estrada Real de Santa Cruz e ia até a Estrada da Penha.
- Venda Grande ficava a duas léguas do Rio. “Por ficar à beira-mar e poderem os barcos carregar em seu porto café e outros gêneros para o Rio de Janeiro, é de muito trato”, diz MILLIET DE SAINT-ADOLPHE, Op. cit., pg. 762.
- Atual Campo dos Afonsos, onde está sediada a Escola de Aviação Militar.
- Gilbert Burnet (1643-1715), natural de Edimburgo, bispo de Salisbury, historiador e filantropo.
- Parece tratar-se de Vargem, ou Vargem dos Padres Bentos, conforme se vê na Carta Geographica da Capitania do Rio de Janeiro, de autoria do Sargento- mor Manuel Vieira Leão, copiada em 1801, pertencente ao Estado Maior do Exército, e reproduzida em MOACYR SILVA, Quilômetro zero, Rio, 1934, pg. 257.
- O cura de Santa Cruz, nomeado a 18 de dezembro de 1822, era o padre frei Antônio da Virgem Maria, franciscano. Cf. Mons. ANTÔNIO ALVES FERREIRA DOS SANTOS, A arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, Rio, 1914, pg. 172. O “colégio do Rio”, a que se refere a autora, deve ser o curso superior, “primeiro ensaio de ensino universitário entre nós”, que os franciscanos fundaram em 1776 no convento de Santo Antônio. O alvará de 11 de junho de 1776 aprovou esta criação. (Cf. Publicações do Arq. Nacional, vol. XX, 1922, pg. 181) e Frei BASÍLIO RÖWER, Os franciscanos no sul do Brasil durante o século XVIII (e outros estudos) 2.ª ed., Petrópolis, 1954, pg. 79.
- A vila de Itaguaí foi originariamente aldeia dos índios Tupiniquins, que o governador Martim de Sá trouxe de Porto Seguro em 1615, quando veio tomar conta do governo. A atual localização data de 1719. Foi elevada a vila em 1815 por D. João VI. (MILLIET DE St. ADOLPHE, Op. cit., I, 482).
- O rio Guandu é formado pelo rio Santana e pelo ribeirão das Lajes. O Guandu-mirim, afluente da margem esquerda, é que nasce na serra de Gericinó, antiga freguesia de Marapicu. Não conseguimos identificar o rio que a autora denomina Tingui. Talvez seja o pr6prio Itaguaí (ou Taguai), assim reproduzido por erro tipográfico, com o qual se liga o Guandu por meio de um canal, construído por benemerência do capitão-mor Manuel Pereira Ramos.
- O rio Taipu, que, após regar a freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, deságua no Iguaçu que desemboca na baía de Guanabara.
- A fazenda Imperial de Santa Cruz tinha três feitorias que lhe eram subordinadas: a de Peri-peri, a de Bom Jardim e a de Serra (ou Santarém). “A 1.ª achava-se estabelecida na baixada, a 2.ª numa garganta e a última nos altos da Serra do Mar. O Peri-peri, no distrito de Marapicu, foi aldeia de índios”. Em 10 de março de 1824, meses, portanto, após a visita de Maria Graham, foi nomeado administrador desta feitoria Felício Pinto Coelho de Mendonça, nada menos que o marido da marquesa de Santos, subordinado ao citado João da Cruz dos Reis. Cf. ALBERTO RANGEL, D. Pedro I e a marquesa de Santos, Rio, 1916, págs. 129, 384, n.º 85.
- Acerca da tentativa de uma colônia chinesa, vinda de Macau, em Santa Cruz, por iniciativa do conde de Linhares, v. OLIVEIRA LIMA, Dom João VI no Brasil, Rio, 1908, pg. 1.000.
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