NYPL – Debret – Praça do Palácio
O Rio de Janeiro foi tantas vezes descrito por outros viajantes, que,
se me limitasse a suprir o que eles omitiram, ou à correção das suas
falsas informações, realizaria minha tarefa com rapidez, mas como
resolvi escrever de maneira uniforme, e livremente, sobre as minhas
próprias observações, ao invés de seguir as pegadas dos outros,
aborrecerei o leitor com narrativa mais detalhada do que a por ele
talvez exigida. Não se deve esquecer, contudo, que o período em que
visitei esta capital, constituindo uma era política nos anais do Brasil,
é suficientemente interessante para desculpar-me, senão justificar-me,
da tentativa de aprimorar as descrições de um período mais remoto,
embora correndo o risco de pequena repetição.
A melhor vista da cidade é a da baía, onde as suas altivas
eminências, cobertas de conventos, e as colinas dos arredores,
entremeadas de vilas e jardins, oferecem aspecto rico e majestoso. O
palácio real confina com o mar e se destaca desde o ancoradouro
principal, a sessenta jardas de suas portas. Embora pequeno, é a
residência do Príncipe Regente e da família real: a casa da moeda e
capela real fazem parte de sua estrutura. Paralelamente à praia, corre a
rua principal, chamada Rua Direita (1), com nobres construções, de onde
partem as ruas menores, formando ângulos retos e entrecortadas por
outras, a distâncias regulares.
Pode-se fazer ideia aproximada da extensão da cidade, pela população,
que, incluindo os negros (a sua porção mais numerosa), está avaliada,
em cem mil almas; as habitações em geral possuem um único andar.
Os numerosos conventos e igrejas são bem construídos e até bonitos; a
catedral, recentemente terminada, é de nobre estilo de arquitetura. As
ruas eram, a princípio, atravancadas por balcões de grade, de aparência
muito pesada, impedindo a circulação do ar, mas foram retirados por
ordem do Governo. Os maiores incômodos que ainda perduram resultam do
costume das pessoas de todas as categorias de andar a cavalo nas
calçadas, e das quinquilharias penduradas nas lojas e nas portas das
casas, que se abrem todas para a rua, com grande aborrecimento para os
pedestres; posso acrescentar também as inúmeras poças de água estagnada,
que, por ser baixo o lugar, só com muito trabalho podem ser drenadas e,
no verão, emitem as mais pútridas exalações. A água que abastece a
cidade vem das montanhas, através de aquedutos e é distribuída às várias
fontes em diversos logradouros públicos. É lastimável não sejam mais
numerosas, para o abastecimento dos habitantes, muitos dos quais vivem a
uma milha de distância de qualquer delas e são forçados a empregar
pessoas continuamente no transporte de água; muitos pobres ganham a vida
vendendo-a. A água é boa, e quando guardada em grandes talhas, fresca e
agradável. As estalagens e tavernas são quase destituídas de
acomodações, e tão inconfortáveis que um estrangeiro nelas só residirá
se não encontrar amigo que o hospede. O aluguel das casas, em geral, é
tão elevado quanto em Londres, devido, ao que parece, à falta de
materiais de construção e ao alto preço da alvenaria. A madeira é, em
regra, muito escassa, considerando– se a quantidade que cresce em quase
todas as regiões do Brasil; mesmo a lenha é cara. As provisões,
geralmente abundantes, mas de qualidade pouco escolhida; a carne, não
digna de menção, é, na verdade, má; a de porco, melhor e, se fosse bem
preparada, poderia tornar-se ótima; a de carneiro é quase tão
desconhecida, que os nativos não a comeriam (2); excelente a criação de
toda espécie, mas muito cara. Legumes e vegetais, de todas as
qualidades, muito abundantes, e o mercado de peixe não está mal
abastecido. Apanham-se muitas tartarugas, assim como grande variedade de
peixe; existem numerosos lagostins, muito saborosos e grandes. As
ostras e mariscos, embora inferiores aos nossos, são passáveis.
Em consequência de sua situação baixa, e da imundície das ruas o Rio
de Janeiro não pode ser considerado saudável. Fazem– se, atualmente,
melhoramentos, que remediarão, em parte, esses males; mas outros motivos
tendem a aumentar a insalubridade da atmosfera e a espalhar males
contagiosos, sendo o principal a vasta importação de negros da África,
que habitualmente desembarcam em estado doentio, consequência de viagens
destituídas de qualquer conforto, em local quente e apertado. É
lamentável que a cidade não tivesse sido inicialmente construída segundo
plano semelhante ao dos Países Baixos, com canais para brigues e
pequenos navios, que poderiam ser descarregados nas portas dos armazéns;
tal melhoramento contribuiria, também, para o asseio e salubridade da
cidade.
A polícia não é, de modo algum, mal regulamentada; e levando-se em
conta a atenção que mereceu, desde a vinda da Corte, há toda esperança
de que será colocada em posição respeitável, em pé de igualdade com a de
qualquer capital europeia. As prisões repugnantes reclamam o gênio
benevolente de um Howard para reformá-las. Deu-se um grande passo a
favor da humanidade: a Inquisição foi abolida e com ela o espírito de
perseguição; assim, ninguém pode agora ser injuriado em virtude de
dogmas religiosos, a menos que ataque abertamente a religião oficial.
Essa cidade é o principal empório do Brasil e, em particular, das
províncias de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Cuiabá e Curitiba. Os
distritos de mineração, sendo mais populosos, exigem a maior parte dos
produtos de consumo e, em retribuição, enviam artigos de comércio mais
valiosos; daí as inúmeras tropas de mulas, que viajam continuamente para
este distrito e dele partem; a carga usual é de três cwt. cada uma,
carregada, por distâncias quase inacreditáveis, de 1.500 a 2.000 milhas.
O frete de retorno consiste, principalmente, de sal para o consumo do
gado e ferro para o trabalho das minas.
Nenhum porto colonial do mundo está tão bem localizado para o
comércio geral, quanto o do Rio de Janeiro. Ele goza, mais do que
qualquer outro, de iguais facilidades de intercâmbio com a Europa,
América, África, Índias Orientais e as ilhas dos Mares do Sul, e parece
ter sido criado pela natureza para constituir o grande elo de união
entre o comércio dessas grandes regiões do globo. (3). Dominando também,
como capital de vasto e rico território, imensos e valiosos recursos,
exigia somente um governo eficiente, que lhe desse prestígio político, e
agora adquiriu esta vantagem, ao ser escolhida para residência, da
Corte de Portugal. Os benefícios resultantes deste grande acontecimento
começaram apenas a se manifestar, na época a que se refere esta
narrativa, e as relações comerciais do Rio de Janeiro, embora
consideravelmente aumentadas, estavam, ainda, porém, em princípio.
Procurei fixá-las, de acordo com as melhores informações que pude obter.
As importações do Rio da Prata e do Rio Grande de São Pedro
compreendem quantidades imensas de carne seca, farinha, couro e trigo.
As dos Estados Unidos, principalmente provisões salgadas, farinha,
mobília, piche e alcatrão. Os norte-americanos enviam, em geral, cargas
destes artigos para especulação e, como o mercado é flutuante, e nele
não podem confiar, levam-nas, com frequência, para outros portos. Seus
produtos são enviados comumente para o Cabo da Boa Esperança. Trazem
mercadorias europeias, que trocam por especiarias, para comerciar com a
China, e tomam também o necessário às suas viagens para os Mares do Sul.
Da costa oriental africana, o Rio de Janeiro importa cera, óleo,
enxofre e algumas madeiras. O tráfego dos negros restringiu-se ao Reino
de Angola, por decreto do Príncipe Regente, que proclamou seu intento de
aboli-lo por completo, o mais depressa possível.
O comércio em Moçambique é insignificante; mas, desde que a captura
da ilha de França pelos ingleses limpou aquela costa de piratas
franceses, pode-se esperar o seu aumento. Ela produz muitos artigos de
valor, tais como: ouro em pó, trazido do interior, marfim, do qual o
Príncipe monopoliza a maior parte, ébano e outras madeiras finas,
drogas, óleos, excelente raiz de columbino e grande variedade de goma,
principalmente de goma-meni. As pescarias de baleia, ao longo da costa, constituíram fonte de riquezas para muitos especuladores.
O intercâmbio deste porto com a Índia, e com Moçambique tem sido
muito prejudicado pelos piratas da Ilha de França, e, daqui em diante,
provavelmente, também florescerá com o seu extermínio. Realiza-se com
grande rapidez a viagem de ida e volta: um navio grande, de oitocentas
toneladas, que parte, carregado, para Surat, volta depois de sete meses.
A viagem à China raramente é mais demorada. O comércio, não há dúvida,
se intensificará e, segundo todas as probabilidades, este porto se
tornará, dentro em breve, entreposto para os produtos da Índia,
destinados à Europa.
O Rio de Janeiro está muito bem localizado para suprir o Cabo da Boa
Esperança e a Nova Gales do Sul de grande número de coisas necessárias;
na verdade, nos últimos anos, manufaturas inglesas têm sido aqui
vendidas tão baratas que se verificou ser mais vantajoso enviá-las
diretamente deste porto para aquela colônia, do que exportá-las da
mãe-pátria. Os barcos dos pescadores da baleia dos Mares do Sul aportam
aqui e se abastecem de grandes estoques de bebidas, vinho, açúcar, café,
tabaco, sabão e provisões de boca.
As importações da mãe-pátria consistem, principalmente, em vinho e
azeite. Ocasionalmente importam algum ferro da Suécia; preferem o ferro
inglês para ferraduras, devido à sua ductilidade.
As exportações compreendem, acima de tudo, algodão, açúcar,
aguardente, madeira para construção de navios, várias madeiras finas de
marcenaria, peles, banha, anil e algodão bruto, para os peões das
províncias do Rio da Prata. Entre os artigos de exportação mais valiosos
podem ser citados o ouro, dia– mantes, topázios de várias cores,
ametistas, turmalinas (vendidas em geral por esmeraldas) berilos, águas
marinhas e joias falsas.
Este mercado tem sido abarrotado de mercadorias inglesas, em
consequência de especulações excessivas, a que os nossos comerciantes
foram incitados pela última emigração. A oferta excedeu a procura, em
grau duplicado, e o excedente originou leilões, onde as mercadorias
foram vendidas a preços reduzidos, sem precedentes. À medida que as
mercadorias inglesas barateavam, as do Brasil aumentavam de valor, e a
procura se tornou tão grande, devido ao enorme número de navios
aguardando as cargas, que, um ano depois da chegada do Príncipe Regente,
o valor de cada artigo duplicara. O ouro desapareceu rapidamente, pois
os portugueses endinheirados, percebendo a avidez e a falta de
escrúpulos com que os ingleses procuravam impingir-lhes as mercadorias,
guardavam, cuidadosamente, o seu numerário e, pela alternativa da troca,
vendiam os seus próprios produtos por preço muito alto, e obtinham as
nossas mercadorias quase pelo preço do custo. Os que perdiam nesse
negócio desigual, embora fossem os maiores culpados, devido à sua
própria imprudência em meter-se nele, dirigiam suas queixas e acusações
contra os negociantes portugueses. Assinou-se um tratado de comércio,
pelo qual as taxas sobre as mercadorias inglesas, ou melhor, sobre todas
as mercadorias estrangeiras, que eram de 25%, ficavam reduzidas a 15%, ad valorem.
Nomeou-se um juiz para atender exclusivamente aos interesses ingleses, e
fazer com que se lhes fizesse justiça. Recebeu o título de Juiz
Conservador da Nação Inglesa. A pessoa que ocupa atualmente este
importante cargo é um dos homens mais esclarecidos e honestos; sua
conduta oficial, que tive ocasião de observar, granjeou-lhe o respeito
de todas as partes e deu-lhe direito à escolha do Príncipe Regente,
confirmada pela aprovação de Sua Excelência, Lord Strangford. Além
disso, para cultivar e ampliar os interesses comerciais, Sua Alteza Real
criou uma Junta de Comércio, onde servem homens experimentados e
inteligentes, a cujo parecer são submetidos todos os casos particulares e
todos os novos regulamentos. Um dos membros dessa Junta, Dr. Lisboa,
(4), distinguiu-se muitíssimo, pelo seu zelo para com a nação britânica,
demonstrado em diversas publicações sobre o comércio, principalmente em
uma, datada de maio, 1810, (5), que contém sólida argumentação, baseada
em princípios expostos e reconhecidos pelos nossos mais célebres
estadistas e escritores políticos. Deve-se esperar que a propagação de
princípios tão liberais, sob os auspícios dos ministros, venha a banir
este princípio tacanho com que certos indivíduos opulentos da capital
brasileira olham os comerciantes ingleses, estigmatizados como intrusos;
e que os interesses comerciais, em geral, nesta prospera colônia,
ganhem, pela competição honesta, o que perderam até aqui devido aos
mercados super-abarrotados.
Os negócios da alfândega embora ainda embaraçados por muitos
regulamentos irritantes e enfadonhos, em particular no que se refere a
pequenos artigos, têm sido consideravelmente simplificados; e em
qualquer caso, quando um estrangeiro se encontra em apuros, quanto ao
processo a seguir, pode estar certo de que todas as dúvidas se
esclarecerão e todos os obstáculos serão removidos, apelando para o Juiz
que preside este departamento. A liberalidade e desinteresse deste
excelente funcionário poderão ser melhor avaliados e reconhecidos,
tendo-se em vista que, sua posição poderia levá-lo a embaraçar o
comércio, se fosse mais rigoroso na execução das leis.
Ao mencionar as vantagens para os negociantes ingleses decorrentes da
liberalidade das pessoas em função, não devo omitir muito haver sido
realizado em virtude dos esforços do ministro inglês, que, embora
seguindo linha de conduta conciliatória e moderada, que lhe valeu a
estima do Príncipe Regente, sempre defendeu com firmeza os interesses de
seu país, e, em todas as deliberações a ele concernentes, reservou para
si o voto de Minerva. É verdade que se recusava a ser incomodado por
questões triviais e escrupulosamente desaprovava qualquer tentativa
encoberta de monopólio ou peculato, partisse de onde partisse: mas, em
questões de responsabilidade, agia com rapidez e decisão, nem se negava a
usar sua influência a favor de alguém, quando se lhe fazia pedido
honesto e nobre. Considerando-se as circunstâncias especiais relativas à
embaixada, e também os interesses discordantes que teve de conciliar,
Lord Strangford conduziu-se de maneira altamente honrosa para seu
talento e caráter; e, continuando a merecer a confiança de sua própria
Corte, assegurou a do Príncipe Regente e a de todos os ministros. O
tratado de comércio concluído há pouco é prova da harmonia subsistente
entre eles, e deve ser considerado, da nossa parte, como o mais
vantajoso que poderia ser conseguido, nas condições atuais dos negócios.
O porto, falando de modo geral, é de fácil acesso em qualquer época,
pois existe uma alteração diária de brisa terrestre e marítima; a
primeira sopra até o meio-dia, e a última desta hora até o pôr do sol.
Os navios encontram todas as facilidades para reparos, virar de carena,
etc., mas se espera que se construam, dentro em breve, docas, tornando
desnecessária a última operação aborrecida e perigosa. Paga-se taxa de
ancoragem, que constitui um item da regulamentação de direitos
portuários.
Da sociedade no Rio de Janeiro, o que tenho a observar, difere pouco
da descrição já feita dos paulistas. Os mesmos hábitos e maneiras
predominam em ambos os lugares, com ligeiras modificações, motivadas
pela grande afluência de estrangeiros à capital. Os portugueses são, em
geral, escrupulosos e reservados em admitir estrangeiro a suas reuniões
familiares; mas, recebendo-o uma vez, mostram-se francos e
hospitaleiros. As senhoras são afáveis e corteses para com os
estrangeiros, excessivamente vaidosas, porém, menos orgulhosas do que as
das outras nações. Nas reuniões mistas, requintadas por aquela extrema
delicadeza que em geral caracteriza os portugueses, reina a maior
alegria. A palestra dos homens educados, contudo, é mais animada do que
instrutiva, pois a educação aqui está em um nível baixo, compreendendo
um curso limitado de literatura e ciência. É justo acrescentar que,
desde a chegada da Corte, foram adotadas medidas para efetuar uma
reforma completa nos seminários e outras instituições de instrução
pública; e que o Príncipe Regente, na sua solicitude pelo bem estar de
seus súditos, zelosamente patrocinou todos os empreendimentos, para
neles desenvolver o gosto pelos conhecimentos úteis. Sob seus auspícios,
o colégio São Joaquim sofreu melhoramentos consideráveis: instituiu-se
uma cadeira de química, para a qual foi nomeado, por Sua Alteza Real, um
meu compatriota, Dr. Gardner, e espera-se que a partir desta nomeação
se possa assinalar a data do início da filosofia experimental naquele
estabelecimento.
Volvendo à minha narrativa, afirmo, com serena gratidão, haver minha
recepção aqui excedido a toda expectativa, ou, melhor, a qualquer
pretensão individual em que podia baseá-la. Devo atribuí-la à carta de
apresentação ao Vice-Rei, com que me honrou o embaixador português em
Londres, quando de lá parti, e que entreguei ao Conde de Linhares, nobre
parente do embaixador, e Ministro das Relações Exteriores (6). Este
ilustre homem de Estado concedeu-me todas as atenções e todos os
privilégios que lhe pedi. Assim, graças a sua bondosa condescendência,
tudo me correu bem. Posso fazer esta afirmação, sem o risco de ser
considerado vaidoso, desde que isto foi somente uma entre as numerosas
provas que deu da sua boa vontade em servir aos ingleses, (7), por todos
os meios ao seu alcance.
Passei então revista ao estabelecimento e percorri as terras. A casa,
segundo me informaram, fora convento de jesuítas, donos também das
terras que a circundavam, das quais cuidaram melhor que seus sucessores,
se pudermos julgar pelos remanescentes de seus empreendimentos. O
edifício não é grande nem imponente; construído em forma quadrangular,
com um pátio aberto no centro e galerias no interior, para o primeiro e
segundo andares. 0s alojamentos são em número de trinta e seis, muito
pequenos, tendo sido adaptados para o uso da comunidade e, desde que os
jesuítas partiram, foram ligeiramente alterados e decorados para receber
a família real, como residência de verão. Em frente à casa, em direção
ao sul, estende-se uma das mais belas planícies do mundo, de duas léguas
quadradas, regada por dois rios navegáveis por pequenas embarcações, e
limitadas por belo e altivo cenário rochoso, embelezado em vários pontos
por árvores nobres da floresta. Esta planície está coberta pelo mais
rico pasto, que sustenta de sete a oito mil cabeças de gado. A parte
baixa que é considerável, apresenta-se entrecortada de pântanos, que
podem ser drenados facilmente e tornarem-se cultiváveis. O parque
abrange, em toda a sua extensão, área superior a cem milhas quadradas,
território quase tão grande quanto o de alguns recentes principados
italianos, e capaz, em virtude de sua fácil comunicação com o capital,
tanto por via terrestre quanto fluvial, de transformar-se numa das mais
produtivas, e populosas do Brasil. Com o atual sistema, encontra-se em
estado progressivo de decomposição; dois pequenos trechos, os melhores
da terra, um com cerca de meia légua quadrada e outro com mais de uma,
já foram vendidos, por meio de falsos expedientes, e o restante pode, em
pouco tempo, ser sacrificado a homens cuja cupidez incita-os a
depreciar o seu valor, a menos que se empreguem as medidas adequadas a
frustrar os seus maus intuitos.
Nesta fazenda, os negros, segundo todos os dados que obtive, sobem a
cerca de mil e quinhentos. Constituem, em geral, excelente classe de
homens, de ânimo dócil e tratável, e de modo nenhum destituídos de
inteligência. Esclarecê-los tem dado grande trabalho; são regularmente
instruídos nos princípios da fé cristã e as orações lhes são lidas,
publicamente, pela manhã e à noite, ao iniciar e ao terminar o dia de
trabalho. Pequenas áreas de terreno, por eles escolhidas, lhes são
concedidas, e dão-lhes dois dias na semana, além dos feriados fortuitos,
para plantar e cultivar os produtos destinados à sua própria
subsistência; o resto do tempo e do trabalho dedicam ao serviço de Sua
Alteza. O sistema de administração, entretanto, é tão mau, que vivem
semi-famintos, quase desprovidos de roupas e mais do que miseravelmente
instalados; o salário médio não atinge um penny por dia. Uma
reforma no estabelecimento poderia ter sido realizada facilmente, mas
agora será muito difícil, pois os abusos foram tacitamente sancionados
pela indiferença daqueles cujo dever e interesse era corrigi-los. Nesta
extensão de magnífico terreno vê-se raramente um cercado; as terras
cultivadas estão cheias de mato, e as plantações de café assemelham-se a
um matagal, onde os arbustos silvestres cobrem a lavoura. O gado está
deploravelmente abandonado, e não se encontra, em todos os arredores,
sequer um cavalo digno de ser montado pelo mais miserável mendigo. Tal
era o estado em que encontrei este rico e vasto distrito, que parece ter
sido destinado pela natureza à introdução de melhoramentos que poderiam
determinar pela influência de um exemplo elevado, modificação completa
no sistema agrícola do Brasil.
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Palácio de Santa Cruz em 1823 Desenho de Maria Graham |
Pouco tempo depois de me instalar em Santa Cruz, o Príncipe apareceu.
No dia imediato, à sua chegada, honrou-me com uma visita, depois da
qual saí várias vezes com sua Alteza Real. Um dia, deu-me a honra de
manifestar o desejo de que me encarregasse da administração da fazenda;
pedi licença para declinar desta proposta, alegando a impossibilidade de
conciliar tal emprego com os meus outros interesses, lembrando ao mesmo
tempo o serviço superior que podia prestar trabalhando na mina de
ferro. Não obstante isto o Príncipe, no dia seguinte, entregou-me um
papel, contendo uma proposta para superintender toda a fazenda e
estabelecendo as condições. A insistência na oferta não me embaraçou
pouco; tinha consciência de que, recusando-a, me privava de qualquer
favor futuro; ainda assim, compreendi a dificuldade de aceitá-la de
qualquer forma. Este dilema causou-me tal inquietação, que, para
resolvê-lo, recorri a Sir Sidney Smith, que naquela ocasião visitava
Santa Cruz, pedindo-lhe expusesse a Sua Alteza Real as circunstâncias
que me impossibilitavam de fixar-me no Brasil, e lhe oferecesse meus
serviços durante a minha estada. Depois de mais algumas deliberações,
porém, persuadiram-me a aceitar a designação, a título de experiência,
por alguns meses, com a estipulação expressa de que agiria com absoluta
autonomia. Ao empossar-me do cargo, comecei por tomar providências que
pareciam conduzir ao fim desejado, mas não tardei a perceber que, em
lugar de ser o principal intendente, tinha um superior, a fazer-me
responsável, perante ele, por todos os meus atos, e a manifestar a
determinação de embaraçá-los, por inovações à ordem pré-estabelecida,
Mas este não era o único inconveniente; espetava-se que eu adquirisse
tudo quanto precisasse às minhas expensas, mas não tardei a perceber,
que, em lugar de ser reembolsado, segundo o acordo, era enganado, e por
fim, em parte, roubado. A pessoa a quem aludo era um dos capatazes da
casa do Príncipe; concebera ódio enraizado pelos ingleses, não podendo
tolerar que alguém daque1a nação interferisse num assunto que julgava de
sua competência, e que mantivesse posição capaz de permitir fossem os
serviços reais prestados levados a comparação desfavorável com os que se
gabava de ter efetuado. Não entrarei em detalhes quanto aos artifícios
mesquinhos e aos baixos insultos indiretos que este homem empregou para
fazer-me abandonar o emprego, quando se certificou de que não me
sujeitaria ao seu trabalho servil; isto é suficiente para explicar que,
perdendo as esperanças de obter aquele poder discricionário, sem o qual
nada podia realizar, recusei-me peremptoriamente a continuar. Alarmado
com esta deliberação, primeiro tentou intimidar-me e, depois,
abrandar-me, mas já conhecia demais a sua maneira de agir para deixar-me
enganar por este estratagema, ou supor que no futuro nos pudéssemos
harmonizar. Imaginando-se armado do poder real, tentou fazer-se de
tirano, mas a recepção que encontrou forçou-o rapidamente a voltar ao
seu natural, o de velhaco servil. Não hesitei em mandar minha demissão e
ele passou pela mortificação de verificar que os meios empregados para
embaraçar-me e escravizar-me me restituíram a liberdade.
Na carta em que comunicava o meu propósito de abandonar o emprego,
julguei mais razoável não declarar à sua Excelência Dom Rodrigo as
razões que motivaram tal deliberação. Se este cavalheiro conhecesse as
circunstâncias desagradáveis em que me colocara, teria, estou certo,
envidado todos os esforços para removê-las, mas julguei indigno de minha
pessoa queixar-me, sabendo que, enquanto aquele homem permanecesse, eu
seria considerado como lacaio de um servo do Príncipe, e não de Sua
Alteza. Condição tão degradante impedirá sempre qualquer inglês de
empreender a realização dos excelentes e esclarecidos planos projetados
pelos ministros de Sua Alteza Real, para melhorar a agricultura de Santa
Cruz, pois quem se submeteria às ordens de um subalterno, cuja
arrogância e obstinação estão continuamente interrompendo e frustrando
aqueles planos?
Quando voltei ao Rio de Janeiro, o Príncipe chamou-me e pediu-me, com
insistência, voltasse a Santa Cruz; contentei-me com uma simples
desculpa, pois não era oportuno, nem eu estava em situação de entrar em
explicações. É sabido que um sistema de intrigas cerca Sua Alteza Real,
contrapondo-se, muitas vezes, às representações, em assuntos da mais
alta importância.
Notas:
- Atualmente Rua 1.º de Março. (R. L.).
- Por experiência matei alguns e os que provavam a carne admitiam ser excelente; mas um ou outro estranho preconceito impede que os habitantes a sirvam na mesa.
- O Rio de Janeiro desempenhou efetivamente esse papel até a abertura dos canais de Suez e do Panamá. O comércio era então intenso com os portos do Pacífico e do Extremo Oriente. As mercadorias da China, do Japão e também da Costa da África chegavam-nos em abundância e por preços muito cômodos, pois muitas vezes não pagavam fretes, vindo como lastro nos porões dos navios de carga, e os intermediários eram poucos. Ainda podemos ver nos antiquários do Rio de Janeiro, com bastante frequência, objetos antigos de marfim, sândalo, lacas, móveis com embutidos de marfim e madrepérola, e porcelanas, chamadas estas últimas da Índia, ou Companhia das Índias, por serem trazidas para o Brasil nos navios dessa Empresa, embora procedessem do Celeste Império. Quase todas as famílias de tratamento possuíam baixelas e aparelhos para chá da Índia, feitos, às vezes, de encomenda, e decorados a gosto do possuidor e com, o seu brasão d’armas, quando o tinha. A louça azul, ou de Macau, como era conhecida, procedia de manufaturas de Shanghai ou Shiangsi, e tiravam o nome da cidade sino-portuguesa que servia de entreposto ao comércio, da mesma forma que a pimenta do Oriente e os queijos de Holanda são ainda hoje chamados no Brasil pimenta e queijo do Reino, por nos chegarem através da metrópole durante os tempos coloniais. A louça de Macau, hoje tão cara e apreciada pela raridade, era baratíssima; vinha como lastro no fundo dos navios, e se julgava indigna de aparecer nas mesas da aristocracia e da burguesia opulenta, sendo relegada ao uso dos criados e dos dependentes de baixa condição social (R. L.).
- José da Silva Lisboa, visconde de Cairú, nasceu na Bahia, a 16 de Junho de 1756 e faleceu no Rio de Janeiro a 20 de Agosto de 1835. Era formado por Coimbra em Cânones e Filosofia (1779), e desempenhou importante papel na história comercial do país sugerindo ao Príncipe Regente D. João a célebre lei de 28 de Janeiro de 1808, chamada da abertura dos portos. Escreveu numerosos panfletos sobre matérias econômicas, políticas e históricas. Partidário, como o seu compatriota e contemporâneo o bispo Azeredo Coutinho das ideias de Adam Smith, foi entre nós um dos paladinos do liberalismo econômico e do livre-cambismo da chamada escola de Manchester, contrária aos monopólios de qualquer espécie. Era irmão do célebre botânico e cronista Dr. Balthazar da Silva Lisboa, e pai do Conselheiro Bento Lisboa, ilustre diplomata da época imperial (R. L.).
- Em 1810 publicou o Dr. José da Silva Lisboa o “Discurso sobre a franqueza do Comércio de Buenos Aires”, traduzido do espanhol, e “Observações sobre a franqueza da Indústria e Fábricas no Brasil”, trabalho original. As obras de Cairu mais importantes nesse ramo foram, todavia, os “Princípios de Direito Mercantil”, Lisboa, 1801 e “Princípios de Economia Política”, Lisboa, 1804. Os “Princípios de Direito Mercantil” fizeram época, foram reimpressos mais de uma vez, inclusive em Londres. (R. L.)
- D. Domingos Antônio de Souza Coutinho, Conde e depois Marquês do Funchal, Embaixador de S. M. Fidelíssima junto à Corte de S. James, era irmão e não apenas parente do Conde de Linhares, ministro de D. João. A Livraria Coelho, de Lisboa, anunciou à venda no seu catálogo n.º 14 (1930), item n.º 1064, uma carta autógrafa escrita do Rio de Janeiro a 8 de Junho de 1.810 por Francisco Bento Maria Targini, 1.º barão e 1.º visconde de S. Lourenço, ao Marquês do Funchal. Targini era Tesoureiro-Mor do Erário, cargo correspondente atualmente ao de Ministro da Fazenda, e como, pelo que diz o catálogo, a carta versa sobre a exploração dos diamantes no Brasil, é quase certo que encerre dados interessantes sobre as atividades de John Mawe, e as sugestões que diz ter feito a respeito ao governo português (R. L.).
- O Conde de Linhares foi sempre muito apologista dos ingleses, embora, bom e leal português, jamais sacrificasse, pelo menos conscientemente, os interesses de sua pátria aos do estrangeiro. D. Carlota Joaquina, como princesa espanhola que era, não o podia suportar, dado o tradicional antagonismo entre as políticas britânica e castelhana, e a influência que o ministro sempre exerceu junto ao Príncipe Regente. Entre os apelidos depreciativos com que o designava, era um o de Torvelinho, com o qual certamente mostrava atribuir-lhe atitudes de política tortuosa e mistificadora. V. Presas: Memórias Secretas de D. Carlota Joaquina. Irmãos Pongetti – Zelio Valverde, Editores, Rio de Janeiro, 1940, pag. 70 (R. L.)
Fonte:
[mawe1944] J. Mawe, Viagens ao Interior do Brasil, Principalmente aos Distritos do Ouro e dos Diamantes, Valverde, Z., Ed., , 1944.







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